Visões Diversas Sobre a Via Iniciática no Marco Evangélico.
(POR Pascal Gambirasio d’Asseux)
Este título é voluntariamente provocativo. Mas a "pró-vocação", em sua essência, não deve ser entendida como um chamado para realizar algo, como um chamado para algo ou alguém ...? Sendo esse "alguém", como bem se pode entender, o mesmo Jesus Cristo que não para de chamar os homens para segui-lo e imitá-lo ?
O subtítulo, por sua vez, anuncia a orientação e o objetivo deste trabalho (que reconhece com satisfação seus limites e imperfeições), tratando de um tema importante de nossa via espiritual. De fato, como cristãos iniciados, devemos estar cientes do caráter paradoxalmente específico e universal de nossa jornada, e como o Papa João Paulo II bem apontou em sua exortação apostólica "VITA CONSECRATA" apresentada em 1996: "Embora toda a Sagrada Escritura seja (…) fonte límpida e perene de vida espiritual, os Evangelhos são ‘o coração de todas as Escrituras’”.
O significado da palavra iniciação (do latim: initium) é duplo e conota, por um lado, a ideia de encaminhamento, mais particularmente dos primeiros passos para percorrer uma rota e, por outro, a ideia de uma interioridade.
A iniciação é, portanto, naturalmente definida como uma rota interior, como uma busca pela interioridade, insistindo em seu caráter inicial, provavelmente para sublinhar que seu termo, sua realização "não é deste mundo" em seu sentido evangélico. o que não significa que não possa ser alcançado, realizado "neste mundo" ou "a partir deste mundo". Voltaremos a isso mais tarde.
Essa jornada interior, portanto estritamente falando, essa via do e para o coração, é simultânea e efetivamente, uma jornada em direção ao "alto", uma jornada em direção ao Reino dos Céus, na qual Jesus Cristo nos revela que “Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de Deus dentro de vós” (Lc 17:21). Vamos ressaltar aqui que o termo esoterismo significa, exatamente, “aquilo que está dentro”, no “coração” das coisas ou seres.
[Nota do Blog Primeiro Discípulo: Embora inspirador (e até mesmo por isso debruçamo-nos a traduzir o texto e trazê-lo aos leitores) não se pode afirmar que a versão da Bíblia que o autor do texto utilizou para basear-se traz consenso final. Certamente ele utilizou uma versão moderna (dessas ditas “revisadas” como a NTLH ou a ARA ou a VIVA; outras versões porém apresentam diferentes formas para o texto:
Porque o Reino de Deus está no meio de vocês (Católica - Ave Maria e Bíblia de Jerusalém);
Porque eis que o Reino de Deus está entre vós (ARC);
Porque o Reino de Deus está entre vocês (NVI);
Porque o Reino de Deus está no meio de vós (TB).
Particularmente nos parecem mais corretas as versões que acabamos de citar, mas apoiamos a tese de que “na interioridade” do coração do homem encontra-se o Divino Pai (tese Agostiniana)]
Por outro lado, não é possível evocar esse caráter de rota e caminho que constitui o da iniciação sem lembrar essas palavras do Senhor que esclarecem e iluminam (em todos os sentidos do termo) sua natureza essencial: “Eu sou o Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14:6). O Verbo Divino encarnado na adorável Pessoa de Jesus Cristo é assim apresentado, não apenas como o objetivo de toda iniciação, mas também a própria via para se ascender à ele; diríamos inclusive: a voz, a palavra de apelo que o conclama. De fato, o homem é continuamente chamado por seu Criador e Salvador a se voltar (conversão: em seu sentido pleno) para Ele, Fonte de Amor e Vida: “Siga-me” (Mt 4:19,20 Mc 1:17,18 Jo 1:37-39). A iniciação é, portanto, a busca pelo reencontro, pela intimidade com a Verdade Revelada que é, da mesma maneira, o Caminho que conduz à ela, ninguém, ou nada, senão a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: Jesus Cristo.
Por outro lado, o esoterismo, ou o conjunto de conhecimentos rituais e "operações" a ela vinculados, especificam mais precisamente o conjunto daquilo que surge da esfera da interioridade e, consequentemente, o segredo interior (em cada homem), porque é de natureza sagrada e oculto na "célula do coração", de acordo com o mesmo entendimento que lhe dá o monasticismo. O verdadeiro esoterismo, em oposição a loucura ocultista ou aos travestismos heréticos à qual alguns que se intitulam “buscadores” o reduziram, aparece assim como o coração, a medula e o sangue espirituais do Conhecimento e da Caridade que o Pai nos abre e nos pede pelo Filho no Espírito: "Vinde, e o vede." (Jo. 1:39).
Mas é necessário especificar que a iniciação é, essencialmente, uma via reservada; uma voz que só é percebida caso alguém tenha sido escolhido por ela para ouvi-la. Eis o autêntico sentido da vocação que nos conduz ao desejo espiritual do encontro sagrado que evocávamos há pouco, um encontro de coração a coração com Deus, Criador, Salvador e Amigo, que ao mesmo tempo se revela e se oculta. E para nós, como cristãos, leva a uma mais intensa participação adotiva da vida trinitária, neste amor das Três Pessoas de uma natureza única, que nos é dada pelos Sacramentos do Batismo, Confirmação e a Eucaristia. A realidade desta via reservada, desta vocação específica, é-nos anunciada e justificada por estas palavras de Jesus: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem” (Mateus 7:6), e quando seus discípulos lhe perguntavam por que falava às multidões por parábolas, respondia-lhes: "A vós vos foi entregue o mistério do reino de Deus; mas aos de fora tudo vem em parábolas, para que, vendo, vejam e não vejam; e, ouvindo, ouçam e não entendam (…)." (Mc 4:12). Os significados dessas palavras são múltiplos, todos eles complementares. Eles significam a multiplicidade dos dons de Deus e dos caminhos que levam a Ele, e isso sugere muito claramente, particularmente pela qualificação de “os que estão de fora” (também profano), a vocação iniciática e o conhecimento esotérico.
[Nota do Blog Primeiro Discípulo: O uso do versículo em Mc 4:12 que o autor faz não está em plena conformidade com a sã doutrina do Magistério Cristão, aqui já explicada no artigo: “Circulo Interno ? Os Ensinamentos Secretos de Jesus”, todavia achamos pertinente não omiti-la (posto que se trata de uma tradução) e já que compreendemos o sentido que ele a usa: deixando claro que as grandes dádivas cristãs como a vocação, a confirmação, a iniciação (como socorro divino tal qual sugeria Jean Baptiste Willermoz) e, até mesmo, a salvação não foram feitas para todos os homens, sendo que alguns jamais as irão verdadeiramente alcançar.]
Em outras palavras, essa “vocação iniciática”, esse caminho esotérico, realmente constitui na verdade uma espécie de hermenêutica interna e reservada (entendendo que a hermenêutica é a interpretação teológica dos textos sagrados).
O mistério deste “chamamento” é um componente do mistério das vocações e carismas que Deus dispensa a cada um de acordo com sua infinita sabedoria para o bem de todos na unidade da Igreja, como São Paulo o expõe principalmente em sua epístola aos Romanos (Rm 12:3-8) e em sua primeira epístola aos Coríntios (1 Co 12:4-30). O episódio da Transfiguração do Senhor apoia e ilustra essa via de mistério reservado: de fato, dentre os doze, Jesus escolhe e chama apenas Pedro, Tiago e João; Leva-os separados a outra montanha, o Monte Thabor, para contemplar a manifestação da Glória Divina. Mas “descendo eles do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, até que o Filho do homem ressuscitasse dentre os mortos. E eles retiveram o caso entre si…” (Mc 9:2-10; Lc 9:28-36). A tradição quis dar a São Tiago e a São João o qualificativo de Boanerges, nome que significa literalmente "filhos do trovão". Recordaremos, por um lado, que João e Tiago são os dois santos padroeiros da iniciação de Ofício ou Companheirismo, e por outro, que no curso da cerimônia de iniciação segundo o Rito Escocês Retificado o candidato, justo antes de receber a luz, "ouve" ressoar o trovão.
A resposta livre e amorosa do ser ante o chamado divino, segundo seu carisma próprio e segundo o dom do Espírito que o Pai quis para ele, é o que define o homem de desejo, tal qual é evocado pelo Apocalipse de São João e junto a ele pelo Filósofo Desconhecido Louis-Claude de Saint-Martin.
Esta resposta do amor do homem ao amor de Deus, que a teologia denomina redamatio (1), dá testemunho da orientação do ser, do "sinal" que o marca ontologicamente e do bom uso que o interessado fez da sua liberdade, antes de qualquer coisa, dom gratuito do amor de Deus para com o homem. É a resposta à pergunta feita pelo Senhor a Adão no jardim do Éden: “Onde estás tu?”; pergunta que levou Adão a esconder-se. Mas desta vez, à luz da salvação e da conversão do filho pródigo, a resposta é idêntica à do discípulo Ananias chamado por Jesus no curso de uma visão: “Eis-me aqui, Senhor” (At 9:10) e satisfaz todo o conjunto e a pergunta anterior, quando da “queda do homem” e ao chamado constante do Salvador: "Segue-me" (Mt 19:21).
É a resposta do ser que apresenta sua dignidade essencial - sua nobreza original - e que experimenta em seu eu mais profundo que sua “primeira razão” não é outra senão escatológica: o louvor e a adoração da Santíssima Trindade na intimidade filial desse diálogo autêntico e misterioso que é a verdadeira contemplação: a presença do coração do homem com a Presença do Coração de Deus nele, em primeiro lugar, pelo de Jesus Cristo, o “Emanuel” (2) pelo Espírito Santo.
Por outro lado, nesse aspecto, o primeiro caráter da via iniciática, em sua modalidade cristã, é totalmente mariano, pois, de fato, na história dos homens e na plenitude dos tempos, não há criatura nem ser comparável a Santa Virgem Maria que, como resultado de sua total oblação a Deus, tem sido ou objeto - da forma mais eminente e única - da presença, nela, da Palavra de Deus pelo Espírito Santo. Nesse sentido, ela assume para todos nós o paradigma de toda santidade e nos é dada como exemplo e como mãe. À Igreja em geral e a cada um de seus filhos em particular, especialmente àqueles que receberam a qualificação inicial, ela mostra, quando a Anunciação, o único caminho para Deus se apresentar como a realização perfeita: “Eis a serva do Senhor; faça-me conforme a tua palavra.” (Lc 1:38).
A "qualidade mariana" se revela pois como caráter constitutivo de toda alma oferecida a Deus, que vive de e para o Senhor: única verdade, única origem e o único termo.
Via ativa em uma aparente passividade que é, de fato, uma recepção agradável e ativa, uma receptividade atuante e discernente do coração e do espírito. Não é esse porventura o trabalho de todo iniciado ? Principalmente o do aprendiz, sentado silenciosamente na coluna do norte e que acaba de nascer (ou talvez melhor renascer) para a Luz, que é Cristo ?
Para realizar esta recepção, é preciso em primeiro lugar ser capaz de recolher-se; recolhimento que é silêncio e segredo. Assim pois, a vigilância do centro do ser, esta "célula do coração" da qual falávamos mais acima, esta guarda, esta vigilância, é elemento chave - no sentido pleno da palavra - da via espiritual e, muito especialmente, da via iniciática; ligada por natureza ao mistério do silêncio e da Luz Oculta para todo aquele que não é chamado a contemplá-la em todo o seu esplendor. No ritual de encerramento dos trabalhos do Rito Escocês Retificado é-nos apresentado, uma ilustração imediata disto, através das palavras pronunciadas pelo Venerável Mestre: "Que a Luz que nos iluminou em nossos trabalhos nunca seja exposta aos olhos dos profanos". - Extrato do Ritual Retificado.
Esta vigília, este recolhimento na humildade, já que todo aquele que se sente chamado - e ainda mais no caminho da iniciação - só pode fazer intimamente suas as palavras pronunciadas por todos - e por cada um - no momento da comunhão no Corpo e no Sangue de Cristo: "Domine, non sum dignus (Senhor, não sou digno de que entres em minha casa; mas dizei uma palavra e serei salvo)"; esta guarda e este recolhimento, portanto, enraízam-se e alimentam-se do exemplo maior da Santíssima Virgem Maria, acolhendo a Palavra e recolhendo-se nela para melhor oferecê-la ao mundo; assim como demonstrou São Lucas: “Maria guardava todas estas coisas, meditando-as no coração”.(Lc 2, 19).
É somente na plenitude desta atitude que toda alma capacita-se a voltar a ser, o que ela sempre foi e nunca deixou de ser, desde toda a eternidade, e que traduz tão pertinentemente o brasão e a divisa do grau de Aprendiz do Regime Retificado ("Adhuc stat").
É também o sinal cristão desse caminho iniciático, que de alguma maneira e de acordo com seu próprio caráter e carismas específicos, sela aquilo que em termos teológicos se chama consagração: evoca-se então a vida consagrada ou uma pessoa consagrada. Parece-nos oportuno citar aqui um breve trecho da exortação pontifical citada anteriormente: “À imagem de Jesus, o Filho bem amado que o Pai consagrou e enviou ao mundo (conforme Jo 10:36), aqueles que Deus chamou para o seguirem, estão também eles consagrados e enviados ao mundo para imitar o seu exemplo e prosseguir a sua missão. Isto aplica-se a todos os discípulos em geral. No entanto, aplica-se de maneira mais particular àqueles que são chamados a seguir Cristo ‘mais de perto’, na forma específica da vida consagrada, e fazer disso o ‘tudo’ da sua existência (…) A missão, de fato, caracterizando-se pelas obras exteriores, consiste em tornar presente ao mundo o próprio Cristo através do seu testemunho pessoal. Eis o desafio, eis o primeiro objectivo da vida consagrada! Na medida em que alguém se deixa configurar a Cristo, mais o faz presente e atuante no mundo para a salvação dos homens. Esta consagração, que não deve ser confundida com um dos sete sacramentos, é o vetor de cargos e deveres espirituais”.
No plano e na esfera que lhe são próprias, a iniciação é comparável a uma consagração e exige, com o mesmo rigor, a qualificação e a fidelidade aos compromissos adquiridos solenemente. Quanto ao resto, não nos é pedido no ritual de encerramento do Rito Retificado que “levemos entre os outros homens as virtudes que juramos dar o exemplo” ? (3)... Essa "consagração iniciática", bem poderíamos dizê-lo, cujo caráter indelével é impresso no ser pela recepção daquilo que René Guénon chama de “influência espiritual” recebida no momento da cerimônia de iniciação; é também, como corolário, a fonte dos carismas necessários para essa missão, esses deveres. Carismas, aos quais, por outro lado, aspira nossa oração de encerramento dos trabalhos, recitada no seio da cadeia de união, dispensados pelo Espírito sobre cada um de acordo com suas necessidades e de acordo com os desejos de Deus a respeito dele.
Notas:
Na verdade trata-se de um termo paleocristão que significa a “contra troca de amor entre Deus e o homem”.
Emanuel (em hebraico: עמנואל , Deus Conosco; em latim: Emmanuel).
“Meus caros IIr, ide então em paz gozar o repouso que o trabalho vos mereceu e levai para o meio dos outros homens as virtudes de que juraste dar exemplo. Mas, antes de nos separarmos, demos todos juntos o sinal de alegria e de união fraternal” - Extrato do Ritual de Aprendiz Maçom.
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
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