O Cristianismo e o RER
- Primeiro Discípulo

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Não é necessário um olhar atento para se perceber que a maçonaria moderna parece ter esquecido a própria razão de ser da sua existência. Espelhando-se em fragmentos de um simbolismo descarnado, dissolvida em moralismos humanistas e em interpretações subjetivas que relativizam aquilo que deveria ser tomado, em seus próprios textos, como verdadeiros axiomas; por isso, ela simplesmente não mais contempla o mistério que deveria animar seu âmago. É fato que a maçonaria nunca foi uma instituição sacramental, mas sim uma escola de virtudes cujo sentido profundo residia na elevação do homem do plano sensível ao inteligível; uma via, à semelhança do bios theoretikos aristotélico [1], pela qual o espírito buscava o bem em si. Ao perder essa orientação transcendente, a iniciação tornou-se mero exercício de ética formal, desprovido da tensão para o absoluto que lhe conferia substância. Resta, porém, entre as ruínas dessa dispersão, o Regime Escocês Retificado, guardião discreto de uma linhagem que ancora o caminho iniciático na fé cristã e na ordem misteriosa da salvação.
Esta orientação não é acidental, mas constitutiva. O Rito Retificado nasce e se compreende dentro do horizonte da Revelação, reconhecendo que toda iniciação autêntica implica um princípio superior de vida, uma fonte que antecede e transcende o próprio ato ritual. No contexto cristão, esse princípio não pode ser outro senão Jesus Cristo, Verbo no qual o homem encontra a origem de seu ser e seu fim último, e por meio do qual a regeneração espiritual se realiza como realidade ontológica, e não apenas moral ou simbólica. Dizer, portanto, que o Regime Escocês Retificado exige, ainda hoje, o cristianismo como condição sine qua non, não é restringi-lo a um sistema confessional, mas afirmar a correspondência profunda entre o rito e a fé que o vivifica. Sua estrutura, seus símbolos e sua finalidade só adquirem sentido quando iluminados pela luz daquele que é o princípio de toda iniciação e o termo imediato para a posse do fim último da Reintegração no Ser.
Nesse sentido, apresentamos o ensaio que se segue, extraído da obra Belleza y problemática de una masonería a la luz del Evangelio: El Régimen Escocés Rectificado, de Ramón Martí Blanco, que retoma com precisão essa relação de princípio e consequência. Nele se demonstra que a iniciação maçônica, no contexto retificado, não é um substituto da iniciação cristã, mas o seu desenvolvimento simbólico, um itinerário pedagógico que supõe o Batismo e o orienta à perfeição das virtudes teologais. “Primeiro o cristão, depois o maçom retificado”: a fórmula não exprime hierarquia externa, mas ordem interior das causas.
Assim compreendido, o Rito Escocês Retificado não é um refúgio espiritual paralelo à Igreja, nem um espaço de sincretismo moral, mas uma escola de coerência entre fé e razão, culto e vida. Seu ideal de retificação consiste em fazer com que o iniciado, iluminado pela graça, reflita na obra e no juízo a forma de Jesus Cristo, Pedra viva sobre a qual se edifica o Templo interior. Nesse horizonte, o maçom retificado não se perde em opiniões relativistas, no mundanismo e nem se satisfaz com simbolismos vazios; busca, antes, reencontrar na iniciação a via de sua própria transfiguração e o retorno consciente à Fonte de onde procede toda verdadeira Luz.
O CRISTIANISMO E O R.E.R.
Ou a Condição Prévia Indispensável Para Ser Maçonaria Retificada
Acreditamos não revelar algo extraordinário, pois está amplamente estabelecido e aceito, quando afirmamos e proclamamos que, para ser candidato à iniciação ou filiação no Rito Escocês Retificado, deve-se ser cristão. Esta declaração é conhecida e reconhecida por todos.
Também está amplamente estabelecido e aceito que a maçonaria ou a Franco-Maçonaria não é uma religião. O Rito Escocês Retificado e o sistema maçônico e cavaleiresco que o estrutura e apoia também não são uma religião. Em um momento anterior, discutimos isso em uma comparação dedicada à posição da maçonaria anglo-saxônica em relação à religião, em relação à noção e ideia que a maçonaria Retificada tem sobre ela.
Portanto, para ser membro e praticar o Rito Escocês Retificado, deve-se ser cristão. Como entendemos essa afirmação? Significa que, antes de se tornar maçom, deve-se ser cristão para ser considerado um candidato aceitável para adquirir a condição de maçom, e não o contrário.
A forma como entendemos a noção e o fato de ser cristão será o objeto de estudo e reflexão do presente trabalho, porque, embora essa afirmação pareça óbvia, na prática, ela não parece ser tão evidente.
Nossos próprios rituais nos dizem que a condição de ser cristão é essencial, e eles se asseguram de que assim seja desde o primeiro momento e ao longo da vida maçônica, como veremos mais adiante. Uma vez estabelecida e esclarecida a condição prévia mencionada no título, abordaremos, em uma segunda fase, mas intimamente ligada à primeira, a amplitude e dimensão de ser um Maçom Retificado, como um caminho iniciático de realização espiritual intrinsecamente ligado à tradição e religião cristãs. O Rito Escocês Retificado e sua metodologia iniciática desenvolvida ao longo de suas duas Classes que compõem o Rito Escocês Retificado constituem o último caminho iniciático ainda vivo no mundo ocidental de tradição cristã.
No entanto, talvez porque o cristianismo seja tão intrínseco à cultura e ao mundo ocidental em que vivemos, muitos aspectos dessa noção de cristianismo são considerados como pressupostos, fazendo com que nos declaremos cristãos e o sejamos mais "culturalmente" do que "cultualmente". Por este último termo, entende-se a prática do culto cristão em qualquer das confissões do cristianismo ecumênico. Isso se relaciona ao que estamos discutindo, como quando se afirma que o Rito Escocês Retificado é um rito "crístico", como se quisesse defini-lo de acordo com nossa linguagem atual, como um cristianismo de "perfil baixo", quando já afirmamos em um trabalho anterior que cristão e crístico significam e expressam a mesma coisa.
Somos cristãos por meio do sacramento do Batismo, que nos infunde uma graça divina, não porque preenchamos um formulário para entrar ou fazer parte de uma associação de qualquer tipo, da mesma forma que nos tornamos maçons por meio da Iniciação (voltaremos à noção de iniciação e como entendê-la mais adiante), pois se a Ordem Maçônica não fosse considerada uma Ordem iniciática, não faria sentido desenvolver um ritual e uma liturgia específica para ingressar nela, já que a simples assinatura de uma solicitação seria suficiente. A realização de uma cerimônia ritual indica que o que está prestes a começar é mais do que um mero processo burocrático ou administrativo.
Somos cristãos porque temos fé em Cristo, a segunda Pessoa da Trindade e Filho de Deus, e é por isso que nos batizamos. Se não o fazemos diretamente, pois quando somos muito jovens ainda não somos capazes de discernir, nosso Padrinho o faz em nosso nome. O Batismo, que os católicos, anglicanos e ortodoxos renovam quando estão plenamente conscientes, é seguido pelo sacramento da Confirmação (ou Crismação nas igrejas ortodoxas) e culmina com a Comunhão, que a Igreja considera os três sacramentos da iniciação cristã, finalizando com a Eucaristia instituída por Cristo durante a Última Ceia.
A fé é um dom de Deus. Deus se oferece e nos busca constantemente por meio de pessoas, experiências e eventos que nos chamam e nos atraem em Sua direção. A fé não é o resultado de investigação ou estudo humano, mas sempre brota de uma confiança cada vez mais viva que Deus desperta em nós ao se revelar. É Deus que se aproxima do homem e, na maioria das vezes, percorre a maior parte do caminho. A fé madura é um ato pessoal; é a resposta livre do homem à iniciativa de Deus.
Paulo de Tarso nos lembra disso em sua epístola aos Efésios: "Pois vocês foram salvos pela graça, por meio da fé; e isso não vem de vocês, é dom de Deus" (Efésios 2:8).
Deus deseja que o homem seja livre e nunca o obriga. Se o homem quebrou sua aliança com Deus por um exercício de sua livre vontade, caindo no que é conhecido como Pecado Original, arrastando a Criação e toda a sua descendência até a morte e ressurreição de Cristo, deve ser também o homem, por meio de um exercício dessa liberdade e em justa correspondência ao Amor de Deus, que se volta para Ele. Isso é o que constitui o Cristianismo.
No entanto, a fé cristã deve ser nutrida e cultivada. Devemos fortalecer nossa fé, mas como? E por quê? Começaremos respondendo à segunda pergunta para depois abordar a primeira: por coerência (algo raro nos tempos em que vivemos). O apóstolo Tiago nos lembra disso: "Assim como o corpo sem o espírito está morto, a fé sem obras também está morta" (Tiago 2:26). Mas como fortalecer a fé:
Através da oração buscando aconselhamento e orientação espiritual
Leitura da Bíblia e dos Evangelhos (Lectio Divina)
Participação na Eucaristia e culto religioso, pois "a fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela palavra de Cristo" (Romanos 10:17).
A oração é necessária para fortalecer a fé. A Regra Maçônica do R.E.R. enfatiza isso e nos lembra dos benefícios da oração quando nos diz: "Vigie e ore", enfatizando a vigilância, pois no caminho que escolhemos e na jornada que fazemos, os perigos nos cercam, e a possibilidade de errar está sempre presente.
Certamente, na maçonaria e no Rito Escocês Retificado, por mais cristãos que sejamos, o Venerável Mestre não nos exigirá um certificado do pároco ou pastor atestando que frequentamos a missa ou o culto. No entanto, por uma questão de coerência, devemos nos perguntar se podemos nos considerar cristãos vivendo alheios à Igreja e à prática religiosa.
Ser cristão exige dar testemunho disso, como nos lembra o Venerável Mestre da Loja ao encerrar cada uma de nossas Sessões: "Vão e levem entre os outros homens as virtudes das quais vocês juraram dar exemplo".
Porque somos cristãos e maçons praticantes do Rito Escocês Retificado, e nessa ordem. Se não tivéssemos sido cristãos primeiro, não teríamos podido nos tornar maçons Retificados depois.
A Ordem Retificada se assegura disso, inclusive antes de nos apresentar à Loja, por meio das Três Perguntas de Ordem que nos são feitas quando ainda estamos na Câmara de Reflexão. A primeira pergunta termina perguntando: "O que você pensa sobre a religião cristã?" Essas Três Perguntas, incluindo a pergunta sobre o que pensamos sobre a religião cristã, nos serão apresentadas em cada grau, à medida que passamos pela Câmara de Reflexão ao longo de nossa jornada maçônica na Classe Simbólica.
No grau de Aprendiz do R.E.R. e fazendo parte do Compromisso (causando grande agitação e controvérsia na concepção "universalista" da maçonaria), o candidato até então presta juramento como Maçom e se compromete "com sua palavra de honra [...] a ser fiel à Santa Religião cristã".
Mais adiante, seguindo nossa Classe Simbólica, no ritual de recepção ao grau de Companheiro, o Aprendiz Maçom ainda é apresentado à Loja como "professando a religião cristã". O mesmo ocorre na recepção ao grau de Mestre Maçom, onde as mesmas palavras e formulação são repetidas. Além disso, nossa Regra Maçônica, presente no ritual de Aprendiz, em seu Artigo Primeiro, que trata dos Deveres para com Deus e a Religião, nos aconselha a "professar em todo lugar a divina religião de Cristo e não se envergonhar de pertencer a ela". O mesmo conselho nos é relembrado sob a forma de Resumo da Regra, no ritual de Companheiro: "Abençoa a Providência que te fez nascer entre os cristãos", e no ritual de Mestre Maçom: "Abençoa a Providência que te fez nascer entre os cristãos".
A exigência da condição de ser cristão é claramente estabelecida nos rituais dos graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre Maçom, e se torna evidente no grau de Mestre Escocês de São André, encerrando a jornada pela nossa Classe Simbólica e reafirmando essa exigência de forma clara e indiscutível antes de seguir qualquer caminho possível.
Até este ponto, acreditamos ter destacado a necessidade incontornável de ser cristão como condição prévia para se tornar um Maçom Retificado, bem como que esse cristianismo não seja meramente "cultural", mas que, por uma questão de coerência, exija um certo envolvimento, indo além da "teoria" ou das meras formalidades exteriores.
Tendo estabelecido que o cristianismo, ao longo da história da humanidade, prefigurou o modelo de Cristo, ao qual Adão renunciou sem consciência disso durante a Queda, e que Deus tem lembrado ao longo da história por meio de várias Alianças (Abraão, Moisés), culminando na Nova e Eterna Aliança selada com a encarnação de Cristo, agora retornaremos ao que deixamos para desenvolver em uma segunda fase.
NOTAS:
1 - Para Aristóteles, o bios theoretikos representa o nível mais elevado de felicidade e a forma de vida suprema que um ser humano pode alcançar.
Finalidade (Telos): O telos (fim ou objetivo) do homem, segundo Aristóteles, é a eudaimonia (felicidade, bem-viver ou florescimento humano).
Função (Ergon): A eudaimonia é alcançada através do cumprimento da função mais elevada do homem, que é o exercício da razão (Nous).
O que é: A vida contemplativa (bios theoretikos) é o uso pleno e contínuo da faculdade racional. É a busca e a contemplação da Verdade e do Bem em si, não visando a um resultado prático (como a vida política ou a vida de prazeres), mas sendo um bem autossuficiente (buscado por si mesmo).
Transcendência: Por ser a atividade da razão, que é a parte mais divina e imortal do ser humano, ela conecta o homem a algo maior, conferindo-lhe um caráter transcendente e imutável.
I.C.J.M.S. Que a Ordem Prospere !




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