Como bem pontuou Jean-François Var em um de seus trabalhos sobre o Regime Retificado ("Le travail du Maçon rectifié") os cristãos tem a Bíblia não como um símbolo mas como uma “realidade espiritual corporificada”. Disso conclui-se que para os cristãos, incluindo obviamente ai os Maçons Retificados, assim como para os judeus e a sua concepção da presença divina através do Torá, os Evangelhos são uma espécie de “personificação” da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, um “objeto” que torna a presença real de Jesus Cristo algo tangível, fisicamente presente, o Verbo que se Encarna (tomemos o ponto de vista da substância, para evocar uma equivalência entre a presença de Cristo no evangelho e a presença de Cristo na Eucaristia. A forma, obviamente difere, mas a substância é equivalente). Presença essa tão “perceptível”, tão “palpável”, que jamais pode ser tomada como um mero adorno a compor o mobiliário do templo onde se faz o ritual, sendo ela mesma “o poder que é confiado ao Venerável Mestre, o qual tem fundamento na Lei, e que serve de base aos trabalhos realizados em Loja” (1), ou seja: é a Palavra de Deus, personificada, a permitir a realização da sagrada obra do Maçom em sua Oficina.
De fato não há uma única sessão sob o Rito Retificado onde essa importância capital não nos seja lembrada: “quando, para aperfeiçoar o Vosso trabalho buscardes a Luz que vos é necessária, lembrai-vos que ela se encontra no Oriente e que é aí, E SOMENTE AÍ, que a podereis encontrar” (2). E conforme o Maçom vai avançando pelos sucessivos graus simbólicos na senda iniciática cristã, iluminando sempre os símbolos, figuras e rituais com a Divina Luz permanentemente localizada no Oriente (que não é outra coisa a não ser a Palavra do Deus Vivo) mais cônscio se torna de que sem ela, homem nenhum, nada pode.
No Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 8:23-27 vemos: “E, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram; E eis que no mar se levantou uma tempestade, tão grande que o barco era coberto pelas ondas; ele, porém, estava dormindo. E os seus discípulos, aproximando-se, o despertaram, dizendo: Senhor, salva-nos! que perecemos. E ele disse-lhes: Por que temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se uma grande bonança. E aqueles homens se maravilharam, dizendo: Que homem é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem?”.
A resposta a primeira pergunta, encontra-se nela mesma: “Por que temeis, homens de pouca fé?”.
Conformar-se a anagogia da fé (3) a ponto de que ela se torne o regulador central de sua existência, deve constituir-se via central pela qual o Maçom Retificado ascende às regiões celestes. Nela, ele deve “desapropriar-se” de sua vontade, desprender-se de suas preocupações temporais e sacrificar seus “desejos” em nome de seu “desejo” (4) mantendo sempre, na medida do possível, uma idêntica e igual quietude ante qualquer circunstância / disposição que lhe apresente a vida, abandonando-se, assim, a uma união indissolúvel e absoluta com o “Ser eterno e infinito que é a bondade, a justiça e a própria Verdade" (5).
Esse “sacrificar os desejos em nome do desejo” é condição “sine qua non” para se alcançar a reintegração e está representado de forma evidentíssima pelo navio sobre as águas calmas que nos é apresentado durante a cerimônia de recepção de um Mestre Maçom Retificado (6):
“ - Qual é o sinal do grau de M que está colocado à frente do altar no Oriente?
- um navio desmastreado, sem velas e sem remos, tranquilo, num mar de calmaria com estas palavras de inscrição: ‘in silentio et spe, fortitude mea’ (a minha força esta no silêncio e na esperança)
- Como explicas esse símbolo?
- O navio num mar calmo e tranquilo, depois da tempestade, é a imagem do Maçom, que ultrapassou todos os perigos para encontrar a verdade e que repousando na retidão do seu coração, procura com confiança um porto seguro na Ordem, contra os perigos do erro.”
Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, mistica e doutora da igreja, popularmente conhecida como Santa Tereza D’avila ou ainda como Santa Tereza de Jesus, foi quem melhor explicitou a extrema necessidade desse abandono a Providência Divina:
“Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.
Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.
Deseja as coisas celestes, Que sempre duram;
Fiel e rico em promessas, Deus não muda.
Ama-o como merece, Bondade Imensa;
Quem a Deus tem, Mesmo que passe por momentos difíceis;
Sendo Deus o seu tesouro, Nada lhe falta.
Só Deus basta!”
Já nosso Bem Amado Irmão e arquiteto de nosso amado Regime, Jean-Baptiste Willermoz, sempre insistiu no sacrifício do desejo e na entrega do espírito às mãos de Deus como elementos propiciadores de uma santificação libertadora, justificadora e capaz de conduzir a criatura, desde a geração de Adão até os últimos dias, a reintegração:
"É sempre pela mesma Lei que se opera a santificação da universalidade dos seres emanados. Só será pelo sacrifício voluntário do livre arbítrio, pelo abandono mais absoluto da vontade própria, e pela aceitação deste abandono da parte de Deus, que poderá realizar-se sua a união indissolúvel com aquilo que opera sua santificação. Olhemos ao homem e consideremos a via que lhe é assim traçada para sua reabilitação, tanto para ele como para sua posteridade, ali encontraremos um novo sujeito para reconhecer a imutabilidade da Lei divina segundo a qual se produz a santificação dos seres espirituais..." (7)
Notas:
1) Extrato do Ritual de Aprendiz Maçom do Rito Escocês Retificado
2) Idem
3) Êxtase místico, arrebatamento da alma na contemplação das coisas divinas.
4) Alusão ao "homem de desejo"
5) Extrato do Ritual de Aprendiz Maçom do Rito Escocês Retificado
6) Extrato do Ritual de Mestre Maçom do Rito Escocês Retificado
7) J.-B. Willermoz, 6º Cuaderno (1795 -1805), añadido en 1818, Renaissance Traditionnelle, n°80, octubre 1989.
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
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