A NOÇÃO DE G.·.A.·.D.·.U.·. NA ORDEM RETIFICADA
- Primeiro Discípulo
- há 4 dias
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O blog Primeiro Discípulo foi criado com a finalidade de prover aos irmãos do Rito Escocês Retificado no Brasil um manancial de saberes e materiais de estudo, os quais, à época de sua criação, circulavam de forma escassa e fragmentada, mesmo entre as lojas que, por vaidade ou zelo, se proclamavam primazes em suas respectivas jurisdições — ressalvadas, naturalmente, as honrosas exceções. Nessa ocasião, não era raro ouvir verborragias do tipo: “O RER é um caminho de via cardíaca”, “O elemento Ar não está presente na iniciação pois está implícito no ser vivo ”, “O cristianismo do RER é o do Cristo Cósmico” — dentre outras tantas construções desconexas que circulavam impunemente. Isso sem mencionar aqueles que tratavam o RER como um mero ‘puxadinho’ do Martinismo, da Rosa-Cruz e de outros grupos afins.
A esperança inicial era que, munidos desses conteúdos, os irmãos deixassem de inserir na doutrina do Rito enxertos estranhos à tradição dos Pais Fundadores do regime. Entretanto, passados os anos, mesmo de posse de escritos de qualidade, ainda observamos que, entre os maçons retificados, alguns continuam a aderir à confusão doutrinal de nossos tempos, acentuando-a ao misturá-la com heterodoxias “esquisotéricas” do passado.
É cada vez mais evidente que, em meio ao charco da miséria anímica em que o homem moderno se encontra — marcado pelo relativismo religioso, pelo sincretismo difuso e por uma espiritualidade cada vez mais desconectada da Verdade revelada —, torna-se urgente recordar que não existe vida espiritual autêntica, nem iniciação que a ela conduza, onde se obscurece ou se relativiza a fé no Deus verdadeiro. A experiência religiosa — ou o socorro oferecido ao homem por meio da iniciação maçônica, que deveria conduzi-lo a uma vida virtuosa, firmemente orientada para a consecução do Supremo Bem —, quando dissociada da Revelação, rapidamente se esvazia, dando lugar a meras construções subjetivas, muitas vezes moldadas por modismos culturais ou filosofias de cunho naturalista.
É justamente para combater essa monstruosidade que o estudo criterioso e fiel à tradição do Rito Retificado se faz necessário, sobretudo no campo doutrinário — mais do que em outros aspectos que, ainda que importantes, não são o ponto central que trariam real significado a nossa trajetória iniciática maçonica cristã. Somente preservando a pureza doutrinária herdada de Willermoz - no que concerne a percepção acerca do divino - poderemos resistir à infiltração dessas confusões e garantir que a espiritualidade maçônica permaneça sólida, verdadeira e transformadora.
De posse desse mesmo espírito, oferecemos novamente aos leitores uma tradução de um trecho da preciosa obra “Conversaciones en el claustro: sobre el Régimen Escocés Rectificado y la masonería cristiana”, escrita por Ramón Martí Blanco e Eduardo R. Callaey — autores que, em nosso entendimento, merecem ser mais conhecidos e valorizados entre aqueles que se dedicam ao estudo do Rito Escocês Retificado no Brasil. A obra apresenta um diálogo profundamente enraizado na visão cristã do mundo, conduzido por dois irmãos que, com serenidade e espírito contemplativo, refletem tanto sobre a realidade que nos cerca quanto sobre a própria Franco-maçonaria, sempre à luz da espiritualidade que a Ordem Retificada oferece. Trata-se de reflexões que brotam de uma vida interior sólida e amadurecida, cuidadosamente cultivada no silêncio do verdadeiro claustro — não aquele feito de pedra, mas aquele que reside na intimidade da alma, no espaço sagrado do homem interior. Longe de pretender impor-se como pensamento exclusivo, esse diálogo demonstra, de forma clara, como a vivência autêntica da fé cristã, quando assumida com profundidade e convicção, é capaz de iluminar e orientar o caminho maçônico, protegendo-o contra os desvios do subjetivismo e do indiferentismo que, infelizmente, permeiam o espírito de nosso tempo — inclusive em certos ambientes maçônicos.
O texto que se segue cumpre, portanto, uma função eminentemente didática e apologética. Nele se reafirma, com a clareza que a reta razão e a fé exigem, que o Grande Arquiteto do Universo, no contexto do Rito Escocês Retificado, não é uma abstração filosófica nem um conceito vago, moldável à vontade dos homens. Trata-se, sim, do Deus vivo e verdadeiro, Uno e Trino — Pai, Filho e Espírito Santo —, conforme professamos no Símbolo da nossa fé cristã.
Não se trata aqui de uma escolha subjetiva, tampouco de uma peculiaridade isolada no seio da diversidade das correntes maçônicas. Trata-se de uma exigência objetiva, intrínseca à própria constituição espiritual e teológica do Regime Escocês Retificado, cuja origem histórica e doutrinal está solidamente ancorada na fé cristã. Fora desse horizonte de sentido, o Rito perde sua identidade e dissolve-se nas mesmas incertezas e ambiguidades que caracterizam boa parte da maçonaria contemporânea.
Fazemos então votos que essa leitura seja, para cada interessado, uma oportunidade não apenas para aprofundar a compreensão da doutrina que sustenta a Ordem Retificada, mas também para suscitar, em cada coração, uma renovada consciência da centralidade de Deus na vida do homem, bem como a responsabilidade de preservar, viver e transmitir, sem concessões nem diluições, a fé que recebemos de nossos Pais Fundadores.
Vamos ao texto:
Primeiro Interlocutor - Querido Irmão, ao longo de todos estes anos em nossa Ordem, tenho meditado sobre Deus e sobre a Sua presença em nossos Rituais. É por isso que trago ao nosso diálogo um tema que é frequentemente motivo de debate nos círculos maçônicos: a questão do G.·.A.·.D.·.U.·., o Grande Arquiteto do Universo. Assim como acontece com outros temas que já conversamos anteriormente, a ideia do G.·.A.·.D.·.U.·. varia de Obediência para Obediência. Em nossa Ordem está muito claro que falamos de Deus, mas para alguns maçons esse Princípio poderia ser qualquer coisa, ficando a cargo de cada um fazer sua própria interpretação. Entretanto, essa expressão parece ter sido, em sua origem, uma referência inequívoca ao Criador ou, como costuma ser dito, ao Cosmocrator. E o que nos diz a doutrina retificada a respeito do G.·.A.·.D.·.U.·.?
Segundo Interlocutor - Para a Ordem Retificada, esse tema é absolutamente claro: o Grande Arquiteto do Universo é Deus, e em particular o Deus Uno e Trino dos cristãos, que é Pai, Filho e Espírito Santo, Um em Três Pessoas. Na maçonaria que chamamos de operativa, para os homens daquela época, esse entendimento também era absolutamente evidente: tratava-se do Criador, do Sumo Artífice de todas as coisas, aquele que, no Gênesis do Antigo Testamento, aparece como o Criador de toda a Criação e que, ao concluí-la, viu que era boa.
As coisas começam a se complicar a partir da implantação progressiva do que se conhece como maçonaria especulativa. O homem desse período, influenciado pelos rumos tomados pelo Renascimento e suas consequências — que deslocaram a figura de Deus do centro do mundo e da vida cotidiana —, foi, pouco a pouco, substituindo-O por um humanismo cada vez mais acentuado. Assim, deixou de colocar o foco em Deus para colocá-lo no pensamento humano.
Aquilo que, até pouco tempo antes, constituía a própria razão de sua existência — já que tudo quanto fazia estava orientado a Deus —, passou a ser questionado, transformando-se em objeto de especulação. Talvez o próprio nome da maçonaria que praticamos hoje, “maçonaria especulativa”, nos ofereça a chave do problema. Esse Princípio ordenador de tudo — que para nós é Deus, o Grande Arquiteto do Universo — passou, para alguns maçons, a estar aberto às mais diversas interpretações, tantas quantas a mente humana é capaz de conceber. Trata-se, portanto, daquela mesma temática sobre o progressivo afastamento do homem em relação a Deus, que já mencionávamos em nossa primeira conversa.
Para a Ordem Retificada, nascida precisamente como uma reforma da maçonaria especulativa, a presença de Deus, Grande Arquiteto do Universo, é uma realidade sustentada pela fé.
O primeiro ato dos candidatos, ao serem recebidos na Ordem Retificada, é jurar fidelidade à santa Religião cristã — o que previamente nos certificamos de que professam livremente — e fazem isso de joelhos, colocando a mão direita descoberta (a mão do compromisso) sobre o Evangelho de São João e sobre a espada.
«Prometo sobre o Santo Evangelho», diz o candidato, sendo que a espada simboliza “a força da fé na Palavra da Verdade”. E todos os compromissos que ele assumirá em sua futura trajetória maçônica e cavalheiresca serão realizados sobre o mesmo Livro. A presença do Grande Arquiteto do Universo, que é Deus, está manifesta em tudo e permeia todo o percurso do maçom retificado.
Por outro lado, a Regra Maçônica, que acompanha como anexo o Ritual de Aprendiz, em seu Artigo Primeiro, começa lembrando ao novo Aprendiz quais são os seus deveres para com Deus e para com a Religião.
A tradição e a doutrina cristã são o fundamento sobre o qual se edifica a Ordem Retificada, animando-a e dando-lhe vida. Se retirarmos o Cristianismo do Régime Escocês Retificado, então teremos outra coisa — algo tão pouco claro, tão pouco definido quanto o restante das maçonarias, que podem ser tantas quantas o pensamento humano deseje e seja capaz de conceber.
Todos nós, para nos tornarmos maçons retificados, devemos ter sido batizados previamente, colocando nossa condição de cristãos antes da de maçons, entendendo claramente que é precisamente a nossa condição de cristãos que dá sentido à nossa condição de maçons — e não o contrário.
Para nós, a maçonaria não media entre Deus e o homem; não atua como um filtro modulador ou depurador. Ao contrário, é a nossa condição de filhos de Deus e de irmãos em Cristo, juntamente com a coerência de vida decorrente dessa filiação, que se manifesta na construção deste Templo que os Maçons Retificados erguem à Virtude.
Repito: esse contato direto, sem qualquer mediação, está claramente refletido no gesto de colocar a mão direita descoberta sobre o Evangelho. Diferentemente do que ocorre em outras Obediências e sistemas maçônicos, onde o juramento — que nem sempre se faz sobre o Evangelho de São João — costuma ter, entre a mão e o Livro, a esquadria e o compasso maçônicos. Isso reflete, nesses casos, que a maçonaria funciona como mediadora nesse compromisso.
No nosso caso, os utensílios maçônicos por excelência — a esquadria, o compasso e, acrescente-se, a colher de pedreiro (trulla) — estão, sim, presentes no altar, mas colocados ao lado, e não entre a mão e o Evangelho (ou Bíblia). Isso, contrariamente ao que ocorre em todos os outros ritos sem exceção, possui um significado profundo.
Podemos deduzir daí — e não se trata de uma diferença insignificante, mas sim de uma distinção de capital importância — que, nos outros ritos, a Franco-maçonaria se apresenta como intermediária entre aquele que se compromete e Deus, atuando como instrumento desse juramento. No Rito Escocês Retificado, não é assim.
O único intermediário é a fé daquele que se compromete, e, a propósito disso, a instrução moral acrescenta, como prolongamento da fórmula já citada, uma precisão que está totalmente em consonância com São Paulo:
A fé, “sem a qual a Lei, sozinha, não saberia como conduzir o maçom à verdadeira Luz”.
No nosso Rito Escocês Retificado, a maçonaria não é uma mediação necessária que reconcilia o homem com Deus; ela é, sim, a consequência natural da adesão íntima e prévia do homem a Cristo. E isso muda absolutamente tudo.
Faz-se, aqui, uma necessária precisão quanto à terminologia — especificamente sobre a expressão “doutrina retificada”, que mencionas em tua pergunta.
A doutrina retificada não pode nem deve estar acima da doutrina cristã, que é sua base e seu referencial. Em termos jurídicos, trata-se de uma relação entre uma lei de hierarquia superior (a doutrina cristã) e uma lei de hierarquia inferior (a doutrina retificada); esta última sempre estará subordinada à primeira e jamais, em nenhuma hipótese, poderá se opor a ela.
Assim, a doutrina retificada nunca pode ser interpretada em contradição com a doutrina cristã, pois isso seria o mesmo que pedir a alguém que deixasse de ser cristão para poder ser maçom — o que seria um completo contrassenso.
Como poderíamos pedir a alguém, cujo primeiro compromisso na Ordem foi precisamente jurar fidelidade à santa Religião cristã, que violasse esse mesmo compromisso? Isso equivaleria, nem mais nem menos, a incitar essa pessoa ao perjúrio.
I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere !
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