"A pedra que os pedreiros rejeitaram tornou-se agora a pedra angular" - Sl 118:23
Muito além do que a importante tradição construtora das antigas culturas do Mediterrâneo Oriental, cujos povos deixaram marcas históricas e tesouros de conhecimentos em todos os campos do saber humano, incluindo aí a dimensão sagrada da arte da construção de templos, é certo que a maçonaria, tal qual conhecemos, é fruto de um “espaço cultural” totalmente cristão. Ou seja, ela se desenvolve naquilo que podemos chamar de ambiente cultural, filosófico e religioso judaico-cristão, ao qual as antigas tradições das corporações de construtores da antiguidade se viram incluídas e enriquecidas sendo elevadas a um novo significado, próprio da cultura que as incorporou.
Para a cultura judaico-cristã, Deus é o grande arquiteto, conforme podemos ver em Hb 11:11 “Pois esperava a cidade que tem fundamentos; cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus” e Cristo assume o papel do grande edificador, como descrito em Mt 16:18 : “...sobre esta pedra EU edificarei a minha igreja”. Na iconografia cristã as figuras de Deus Pai e de Deus filho representados com um compasso em mãos (traçando a criação do mundo) podem ser vistas em muitos afrescos e iluminuras e são regularmente empregadas pelos apologistas e professores cristãos. A gravura de William Blake, “O Ancião dos Dias”, mostra a persistência dessa imagem dentro do ideário religioso e poético do ocidente.
Mas para muito além do vínculo entre construção e divindade, o cristianismo deu a pedra um significado que, até então, nenhuma outra cultura atribuíra. Jesus Cristo, falando a Pedro, diz: “Por isso, eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão vencê-la” Mt 16:18. A partir desta afirmação, se construirá todo um contexto alegórico, uma estrutura figural e uma simbologia que destinou-se a outorgar a pedra uma dimensão ontológica. Daí em diante, a pedra deixa de ser somente um objeto material empregado na construção para tornar-se uma dimensão do próprio construtor.
Tal compreensão, que foi base da espiritualidade das corporações de ofício verifica-se facilmente na maçonaria e está fortemente marcada no Regime Retificado, explicitado ainda no primeiro ritual da Ordem, o de Aprendiz: “Irmão Aprendiz esta pedra bruta sobre a qual acabaste de bater é um verdadeiro símbolo de ti mesmo.” ou ainda: “É o símbolo verdadeiro de um Aprendiz e do trabalho que deve fazer sobre si próprio para se tornar digno da verdadeira luz”, podendo citar ainda outro trecho: “Esta Pedra Bruta é o emblema do Aprendiz Maçom [...]”. O conceito aqui, tão natural para nós maçons (devido a herança que trazemos dos construtores cristãos) é completamente diferente do conceito que os construtores pagãos traziam consigo quanto ao objeto da construção e aquele que a erigiu.
A Pedra é ainda o próprio Jesus Cristo, tal qual nos indica São Paulo em Ef 2:19-22 : “Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito”. Essa curta passagem, por si só, mereceria um mergulho exegético o qual, infelizmente, o tempo não nos permite aqui fazer, porém recomendamos aos irmãos que aprofundem o tema… Todavia seu sentido, mais uma vez se vê presente no Ritual do Aprendiz Maçom do Regime Retificado “[...] Trabalha portanto sem parar no seu desbaste, para em seguida a poderes polir, pois é o único meio que te resta para descobrir a bela forma que ela é susceptível de adquirir e sem a qual seria rejeitada na construção do Templo que elevamos ao G.A.D.U.”
E além da figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Pedra Angular, o cristão converte-se, ele mesmo, em potencial pedra do Templo Consagrado. Mas para tal - Conforme o ensino que vemos presente nas palavras dos Pais da Igreja e na concepção figural do monasticismo católico medieval - nem toda pedra pode ser inserida na “parede sagrada” somente as que são previamente “quadradas” (esquadrinhadas / polidas / trabalhadas para que alcancem a forma que as propicie encaixarem-se na parede). Aduzindo ao Ritual do Aprendiz Maçom do Regime Retificado, mais uma vez vemos a familiaridade do pensamento dos Pais da Igreja e dos Pais Fundadores de nosso rito:
- “ Que significa o profundo silêncio que se estabeleceu na Loja, depois de terdes sido confiado aos Vigilantes?”.
- “ Ele lembrou-me que os materiais que foram empregues na construção do Templo de Salomão foram tão bem preparados que não se ouvia qualquer barulho de ferramentas durante a construção.”.
A dimensão da ideia de uma pedra “bruta” sendo polida (esquadrinhada) para bem servir à construção do Sagrado Templo do Senhor não é estranha cristãos do século VIII tanto quanto não é para o maçom retificado:
- “A quem são eles atribuídos?”
- “A Pedra Bruta é atribuída aos Aprendizes para a desbastarem, a Pedra Cúbica aos Companheiros para aguçarem as suas ferramentas, e a Prancha aos Mestres para traçarem os planos.”.
- “ O que significa a Pedra Bruta?”
- “É o símbolo verdadeiro de um Aprendiz e do trabalho que deve fazer sobre si próprio para se tornar digno da verdadeira Luz.”
Existe porém uma diferença no pensamento do cristão do século VIII e do maçom retificado dos dias atuais: O cristão medieval tinha sempre em mente que, caso não trabalhasse para sua salvação, acabaria por encontrar a condenação, tal concepção estava presente na mente do Pai Fundador do Regime Retificado, Jean Baptiste Willermoz, que em carta a Jean de Turkheim advertiu que existem “lugares de grandes penas e grandes sofrimentos” destinados a alma humana que não alcança sua regeneração (no momento do juízo imediato); já os maçons atuais, parecem ter esquecido que se uma pedra não se encaixa na parede da obra seu destino é, no mínimo, incerto...
Essa qualificação de pedra quadrada (cúbica para os maçons) como símbolo do cristão apto para integrar-se como parte estrutural viva na construção do templo é fortemente difundida nos séculos VIII e IX; todavia encontra seu auge como modelo de transformação e trabalho sobre si mesmo em Honório de Autun (cerca de 1080/1125), que exigirá que todo homem, literalmente, edifique ao menos uma Igreja e que seja, ele mesmo, portador não somente da técnica para fazê-lo mas também possuidor de uma práxis moral cujos exemplos deveriam ser obtidos nas Sagradas Escrituras.
Ao ler a obra de Teófilo sobre as técnicas da arte (Diversarum Artium Schedula), considerada muito importante graças a sua significância técnica, nos deparamos com o conceito de que um homem que constrói um Templo não pode deixar de reconhecer a premissa da construção de um Templo Interior em que reine a virtude, missão a qual está convocado a partir do aprendizado do uso das ferramentas. Essa simbologia será reconhecida, incorporada e levada a níveis extraordinários pela própria tradição dos maçons primitivos, os construtores de catedrais. Podemos vê-la no Rito Escocês Retificado em trecho já citado, mas que vale a pena repetir: “A Pedra Bruta é atribuída aos Aprendizes para a desbastarem, a Pedra Cúbica aos Companheiros para aguçarem as suas ferramentas [...]”.
No mundo pagão, cujas construções muitos maçons modernos não cansam de citar erroneamente como chave para compreensão do surgimento de nossa Ordem, a construção dos templos é (na maioria das vezes) obra da dor e do sofrimento de escravos; já no mundo cristão, cada elo da longa cadeia, desde a pedreira até os mais delicados capitéis, estará entregue às mãos de homens livres; homens conscientes do valor da obra que estão a realizar e também conscientes que eles não a verão concluída… Curiosamente essa percepção se faz presente no Ritual do Aprendiz Maçom do R.E.R:
- “Qual é o trabalho dos Aprendizes?”
- “Continuar o que lhes é confiado, mas não o acabar”.
- “Quando é que o acabarão?”
- “Quando o Venerável Mestre desejar acabá-lo.”
Poderíamos citar inúmeros exemplos de aldeias inteiras arrastando carros que levam as grandes pedras desde a pedreira até a obra. Já nem sequer é importante aqui se trata-se do cortador de pedras que arranca blocos da montanha, dos peões aprendizes que transportam essa imensas rochas até a loja, ou dos artistas que esculpem as folhas que adornam as colunas… O que importa é que são homens livres, que abraçaram por vocação ou por tradição familiar, uma profissão que os mantém em contato constante com o sagrado, até que se convertam, eles mesmos, em uma parte do templo que estão a construir.
A maçonaria moderna é - ou pelo menos deveria ser - herdeira desse mesmo espírito, que infelizmente acaba banalizado quando se reduz essa áurea instituição a uma espécie de “clube“, que centraliza sua ação unicamente em sua indubitável capacidade de diálogo e confraternização, ou que tenta ser uma espécie de O.N.G. abraçando unicamente causas humanitárias enquanto ignora um dos principais objetivos da maçonaria, o de levar o homem a verdadeira origem da sua criação… É claro que fazem parte da maçonaria moderna a sociabilidade, a fraternidade, a defesa dos direitos humanos, a luta pela liberdade e pela igualdade… Mas tudo isso só é válido se mantivermos viva a chama que está presente em nosso DNA, chama divina que aqueceu os primeiros maçons e que foi acesa graças a esperança de se transmutar o “animal humano” em um homem espiritual capaz de compreender e transmutar sua própria natureza.
E mais uma vez o Regime Retificado nos recorda:
“Lembra-te constantemente que o Homem foi a Obra-prima da Criação, pois que Deus criou-o à Sua Imagem. Sê penetrado pela natureza imortal da tua alma e separa com cuidado este princípio celeste e indestrutível, das gangas que lhe são estranhas… Oferece em homenagem à Divindade os teus afetos cumpridos e as tuas paixões vencidas. Vigia e ora. Que as tuas mãos sejam puras e castas; a tua alma, verdadeira, reta e pura. Teme os frutos amargos do orgulho que perdeu o homem. Estuda os hieróglifos da nossa Ordem, eles escondem grandes e reconfortantes verdades, e tu tornar-te-ás melhor através desta meditação… A tua alma é a Pedra Bruta que é preciso desbastar”
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
Fontes:
R. Callaey, Eduardo - De la Piedra, Cristo y los masones.
Bettencout, Dom Estêvão (OSB) - O Primado de Pedro.
A Pedra sobre a qual se fundamenta a Igreja neste mundo em << https://www.ofielcatolico.com.br/2001/01/a-pedra-sobre-qual-se-fundamenta-igreja.html >>.
Autun, Honório de - Obras exegéticas.
Rituais de Aprendiz, Companheiro e Mestre Maçom do Regime Escocês Retificado.
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