Diversos assuntos foram tratados em cartas por Jean Baptiste Willermoz e Turckheim. Algumas semanas atrás publicamos trechos de uma carta onde ele tratava, entre outras coisas, sobre a sorte dos defuntos no momento exato da morte (juízo imediato), sobre purgatório e sobre o valor das missas, das boas obras e das orações para aliviar as almas que ali se encontram. Na postagem de hoje, trazemos outros trechos dessa mesma carta que trata sobre temas de vital importância para o entendimento da fé, do pensamento e da personalidade do Pai Fundador do Regime Retificado e que servem como bússola para que o Maçom Retificado possa lançar-se ao cumprimento de seus juramentos ante Deus, a Ordem e os Irmãos.
Inicialmente planejei fazer várias notas acerca do que Willermoz escreve para Turckheim, todavia resolvi restringir-me a dois comentários: Um sobre as fontes rabínicas (incluir aqui também as fontes cabalísticas) e outro sobre a redução da compreensão da Missa e da Eucaristia a mera “prática teúrgica”.
Diversos assuntos são tratados nessa carta, entre eles podemos destacar:
A validade das fontes rabínicas segundo as compreendia Willermoz;
A divisão das confissões cristãs e a oposição entre elas;
As posturas indevidas dos reformadores que pouco ou nada teriam acrescentado em conhecimento ou santidade a história cristã;
A validade e legitimidade da autoridade espiritual da Igreja Romana;
O lastimável senso de manutenção (e desejo) do poder temporal por parte da Corte Romana (Aqui Willermoz se refere aos Cardeais excluindo da lista o Papa Pio VII);
Quais são os dogmas a se guardar e quem são os verdadeiros Mestres a se seguir na doutrina cristã (quem tinha um verdadeiro ensinamento);
O Valor da Eucaristia como socorro indispensável ao ser humano;
E por fim Willermoz tenta mensurar o valor de uma Missa Solene Alta e de uma Missa Baixa ordinária (lembremos que Willermoz falava aqui da Missa Tridentina não sendo possível dizer se ele atribuiria o mesmo valor a Missa atual de Paulo VI).
"Lyon, 5 de Julho de 1.821
Sua carta, meu querido amigo e bem amado irmão, datada de 9 de Junho, me faz esperar uma próxima, proporcionando-me o maior prazer e fazendo-me ver que apesar das diferenças de opinião que nos dividem sobre certos pontos, estamos muito próximos nos sentimentos sobre outros pontos mais essenciais sobre os quais nenhum de nós dois tínhamos pensado. [...]
Felicito-o de todo coração, por ter-se tornado mais livre, logo verás aquilo que somente a experiência é capaz de ensinar, aquilo que faz que o espírito se eleve, se amplie, fortificando-se cada vez mais a medida que se desprende das coisas aqui de baixo
[...]
O estado de debilidade física no qual me sinto gradualmente decaindo não me permite esperar para podermos nos reunir com o tão querido Mestre Geral.
No momento em que esta entrevista seja possível, não prevejo que produza o grau de aproximação que desejamos, as fontes rabínicas do qual se extrai [algum conhecimento], que às vezes produzem algo bom, mas jamais excelente, nunca serão as minhas. Para mim são necessárias fontes mais puras, mais seguras, menos mescladas e mais confiáveis, e já que existem, por que motivo devemos buscar outros ? (1)
Além do mais, tome nota disso, há entre os homens as melhores disposições de uns para com os outros, mas que tem se tornado, ainda que de forma muito cristã, em comunhões diferentes, com tantas prevenções e prejuízos umas em relação às outras que seria necessário algum milagre para que uma não resulte mais ou menos em alvo de desconfiança de outra. Os inúmeros vícios pessoais dos mestres das novas comunhões cristãs estão destruindo toda a confiança que os os católicos romanos lhes poderiam depositar, por outro lado a intolerância cega anticristã da corte de Roma, que não se confunda aqui com seu venerável chefe, se tornou um novo obstáculo a toda sincera tentativa de aproximação. Não me refiro aqui às práticas supersticiosas introduzidas por aqueles [homens], nunca aprovadas mas demasiado toleradas, não me refiro a eles porque já são julgados por todos e não constituem senão pretexto frívolo para os que querem seguir separados; a fé é exigida pelos dogmas reconhecidos pela Igreja universal, tudo o que não é dogma é apenas uma opinião e as opiniões são livres e não obrigam ninguém a nada. Quem são os verdadeiros discípulos do nosso Divino Mestre? Eles são sem dúvida os apóstolos e aqueles que foram instruídos por eles no primeiro século. Aqueles a quem foi dito: Ide e ensinai a todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que Eu vos tenho ordenado, e estejam certos que sempre estarei convosco, até a consumação dos séculos: Aqui está bem estabelecido e de uma vez por todas quem eram nossos únicos e verdadeiros mestres no conhecimento da santa doutrina e dos dogmas que devemos professar. Que grande prova de santidade e de alto conhecimento nos tem proporcionado todos os reformadores dos últimos séculos por ousar direcionar nossa fé, mudar e interpretar com suas fantasias nossos dogmas mais sagrados? Jamais teriam avançado em tempos mais calmos, mas eles tomaram seu tempo: eles escolheram aquele em que uma multidão de orgulhosas pretensões da corte romana exaltou um grande número de soberanos contra eles, fazendo-os querer algumas ocasiões e pretextos para se separar um perigo político; inde irae.
Assim o amor a uma dominação mundana exclusiva na ordem temporal e uma multiplicidade de pretensões tendentes a assegurar tal dominação, tem contribuído muito para a formação e duração dessa funesta catástrofe.
Crê, amigo meu, que vejo com sangue frio uma tiara com três coroas cingindo a cabeça do humilde servidor e primeiro vigário daquele que disse: “Sim, sou Rei, mas meu reino não é deste mundo”? Sofro e gemo; meu padre, meu diretor e vários outros ministros dos altares que reverencio sabem perfeitamente o que penso, mas para eles isso vem de um uso tão antigo, tão consagrado pelo tempo, que seria perigoso mudá-lo e, por essa razão deve ser conservado, eu penso o mesmo.
Não tive oportunidade e nem uma ocasião para conversar com o sereníssimo grão mestre geral sobre a eucaristia da qual jamais disse uma só palavra, evitarei sempre que me seja possível mencioná-lo, sabendo que tendo sido educado no protestantismo levantaria suspeitas contra mim pelo que lhe disse antes. Entretanto vós me destes um grande prazer ao me dar conhecimento de sua opinião sobre este importante assunto. Me dando por satisfeito em caso necessário. Vejo com tristeza que contradiz formalmente, atribuindo tudo ao espírito, a palavra sagrada do divino Salvador dos homens, que fala sem cessar e o mais formalmente possível sobre comer realmente seu corpo, de sua carne e de seu sangue. Quanto a sua opinião sobre a missa, que ele pretende não ser a eucaristia, senão unicamente uma certa operação mágica, creio ser um erro maior que o primeiro e me compadece de todo coração ao vê-lo se privar por um ato de sua vontade e para sempre de um socorro tão grande (2).
É sem dúvida em um sonho que lhe contei e que tive no último ano em que se encontra essa proposição, que é possível celebrar uma Missa Solene para o alívio de um falecido ou que se se possa substituir a Missa Solene por três missas ordinárias que obterão sua equivalência. A Igreja Romana não está em pleno acordo com essa proposição [...] em um caso ou outro o sacrifício é o mesmo. Não há e não pode haver nenhuma diferença, mas existe sim uma diferença muito muito grande para quem assiste, porque o prolongamento dos cantos em uma eleva e fortifica sua intenção, levando-as muito mais alto que uma pronunciação rápida que deixa pouquíssimo tempo para refletir sobre cada palavra pronunciada.
Notas:
1 - Jean Baptiste Willermoz demonstra, já no início de sua carta a Jean de Turckheim, uma profunda preocupação de que um encontro entre ele e o Duque Ferdinand de Brunswick-Lunebourg (Grão Mestre da Maçonaria Escocesa da Estrita Observância, por ocasião do Convento de Wilhelmsbad - 1782) não produzisse uma convergência filosófica (necessária) entre ambos. O motivo para tal preocupação era que o mesmo recorria constantemente a fontes que Willermoz considerava “não confiáveis”: As fontes ditas rabínicas. Para ele, aquilo a qual se atribuía grande autoridade não passava de um emaranhado de pensamentos que mais poderiam confundir um estudioso do que lançar a esse algum esclarecimento, podendo mesmo desviá-lo da senda a que se propôs seguir.
A figura do Rabino surge dado a autoridade extraordinária alcançada pelos escribas e doutores da Lei diante do povo judeu, isso outorgou-lhes um título de respeito: Rab (“meu senhor”) que em grego se disse Rabbi. Com o tempo esse título ganha cada vez mais força, como se verifica nos textos evangélicos. Porém, antes dos tempos evangélicos, não se tinha estabelecido ainda o costume de chamar os grandes mestres de Rabi. Assim, por exemplo, jamais se usou chamar chefes de escola, tais como Hilel ou Shammai, de Rabi.
Os estudiosos da Lei - os escribas e doutores da Lei - atribuíam-se uma tríplice missão:
Definir e aperfeiçoar os princípios legais decorrentes da Torah, a Lei Escrita.
A segunda missão que os escribas se arrogavam era a de ensinar não apenas a Lei escrita, mas também, e principalmente a jurisprudência casuística que eles haviam elaborado e que tomou o nome de Torah Oral ou "Tradição dos Antigos", ou dos "Sábios".
A terceira missão que os escribas e doutores da Lei se impuseram e assumiram foi a administração da justiça pela aplicação escrupulosíssima dos Mishnaioth.
Isso por sí só já traria uma imensa confusão aos ensinamentos Rabínicos
Graças ao Rabinato o judaísmo passou a ter uma tradição escrita e uma tradição oral (chamada qabbala - de qibbel, receber, onde esse receber quer dizer “recebido por tradição”). Tal termo era usado pelo povo de judeu para designar ensinamento religioso transmitido por via oral, ensinamento que Moisés teria recebido do Senhor, mas que não haveria consignado no Pentateuco. Era então à luz da Cabala que se interpretava o texto bíblico da Lei; A cabala tinha imensa autoridade entre os judeus anteriores e posteriores a Nosso Senhor como instrumento de verdadeira exegese. A partir do século III os ensinamentos da Cabala foram sendo contaminados por doutrinas provenientes do paganismo, tais doutrinas visavam principalmente descrever a origem do mundo de maneira fantasiosa de Gên1 a Ez 1. Havia em tais doutrinas um desejo de “completar” as Escrituras tentando lançar luz naquilo que elas não haviam lançado, criou-se então uma verdadeira babel (ecletismo levado a seu extremo onde tudo tenta se entender sem sucesso). Tentavam dar autoridade a suas teorias atribuindo-as a revelações secretas recebidas do céu tanto por Moisés ou outros mestres; tais revelações, os cabalistas só as comunicavam aos a poucos iniciados, criando assim uma espécie de escola esotérica e ocultista. Essa contaminação atingiu seu apogeu no século XII.
Nos séculos XV e XVI surge o “Cabalismo “Cristão” que propagou a cabala nos meios intelectuais e eclesiásticos. Tal corrente de pensamento adentrou os meios reformistas e renascentistas chegando ao clero (o Cardeal Egidio de Viterbo — o Superior Geral da Ordem a que pertencia Lutero — e o famoso exegeta Cornélio a Lapide aceitaram os métodos cabalistas de interpretação da Sagrada Escritura) e se estendeu até o século XVIII.
(Como especificamos em nossa primeira postagem o rito foi estruturado na França e na Alemanha do Século XVIII , onde o pano de fundo era por um lado o esoterismo gnóstico de cunho cabalístico, o pietismo e o idealismo filosófico que originaram o Romantismo Alemão e por outro lado o protestantismo clássico e a simpatia pela filosofia racionalista do nominalismo).
Ora, todo esse “caldo doutrinal” - por vezes contraditório - que exalava das fontes Rabínicas (cabalistas) era profundamente descartado por Willermoz que preferia basear suas reflexões e tomar como ponto de partida para seus estudos e meditações “fontes mais puras (menos mescladas) que, existindo e sendo mais confiáveis, anulam completamente a necessidade de se partir em busca de outras”.
2 - Nesse trecho da correspondência, o Pai Fundador do Regime Retificado, externa sua profunda tristeza pelo modo de pensar do Grão Mestre da Ordem que considera a Santa Missa, em especial a Eucaristia, como uma “operação mágica ou teúrgica”. Willermoz apresenta seu lamento a Turckheim reconhecendo como digno de pena aquele que se priva de um socorro tão grande por ato de sua própria vontade. Ainda hoje é comum ouvirmos entre Maçons aqueles que querem reduzir a missa a uma simples forma teúrgica, na maioria das vezes são irmãos envolvidos com “seitas ou grupos esotéricos” que por total desconhecimento sobre o magistério cristão ou sobre as Escrituras acabam por se agarrar e repetir opiniões genéricas sobre as verdades da fé que, miseravelmente, desconhecem. A isso disse Willermoz: “ tudo o que não é dogma é apenas uma opinião e as opiniões são livres”. Ora, a Eucaristia é instrumento especialíssimo idealizado por Deus para salvação dos homens, sobre ela dizia São Basílio Magno:
“ Na Eucaristia está presente “in nuce”, de um modo incoado, a realização do plano salvífico universal de Deus: com Cristo ressuscitado faz-se presente a nova criação, os novos céus e a nova terra, a nova humanidade. Com efeito, na transfiguração gloriosa de Jesus Cristo já se havia inaugurado a renovação escatológica do mundo: no Senhor ressuscitado, o “eschaton” – Aquele que representa as realidades últimas – já está presente o oitavo dia, a eternidade que se manifesta no presente, fazendo com que saboreemos já o que iremos encontrar na vida eterna”. (São Basílio Magno, †379, De Spiritu Sancto, 27, 66: SCh 17 bis, 237.)
I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere!!!
Fontes:
(cfr.Emil Schürer, The History of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175B.C.-135A.D.), T.&T. Clark, Edinburgh, 1979, vol. II, 325-326-327);
Fedeli, Orlando - “Escribas, Doutores da Lei e Fariseus”;
Fedeli, Orlando - "A Cidade do Homem contra a Cidade de Deus - As Revoluções da Modernidade";
Bettencout, Estevão - "A Cabala";
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