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Da Incompatibilidade Entre o Tratado da Reintegração dos Seres e a Integridade do Magistério Cristão - Parte 1:  Antes do tempo, a imensidade divina.

Atualizado: 13 de set. de 2024

A série de artigos que ora iniciamos dispõe-se ao propósito central de analisar, de maneira não rasa, porém não ambicionando esgotar o tema, as doutrinas contidas no 'Tratado de Reintegração dos Seres em Suas Primeiras Propriedades, Virtudes e Potências Espirituais e Divinas' ou ‘Tratado de Reintegração dos Seres’, obra do teurgo Martínez de Pasqually, fundador dos Elus Cohen, à luz da Filosofia e do Magistério Cristão. 


Nosso objetivo central é apresentar aos praticantes do Rito Escocês Retificado uma luz, que não ambicionamos tratar como única, acerca de questões essenciais a prática e a preservação da doutrina a qual passaram a se dedicar no momento de sua iniciação, ou de sua filiação, a qualquer corpo que pratique o Rito/Regime (seja sob a luz de potências mistas ou de priorados autônomos).  


O Tratado de Reintegração dos Seres, obra inacabada escrita a pedido dos discípulos de Martinez de Pasqually, veio à luz na França do século XVIII, destinado ao uso da Ordem dos Cavaleiros Elus Cohen do Universo, e deveria ser a obra fundamental para a doutrina a que estavam submetidos. Embora essa Ordem tenha se extinguido rapidamente após a morte de seu fundador, seu corpo doutrinal continuou a influenciar várias outras ordens e grupos que permanecem ativos até os dias atuais: Martinistas, Martinezistas, New Cohens, e alguns grupos que praticam o Rito Escocês Retificado (R.E.R.). É justamente a intersecção entre as doutrinas de Pasqually e as práticas do R.E.R., uma ordem que se declara cristã, que nos convida a refletir, de forma crítica e analítica, sobre o cerne dessa doutrina e até que ponto ela pode comprometer tanto a integridade do Rito quanto a fé cristã professada por seus membros.


Não há um único momento, quando dedicados a pensar a obra de Pasqually, em que não recordemos o posicionamento de Robert Amadou: “Caso alguém queira conhecer verdadeiramente as influências e fontes Martinezistas presentes no seio do Regime Escocês Retificado não precisa se debruçar brutalmente sobre o ‘Tratado de Reintegração dos Seres’, bastando para tanto, em primeiro lugar, dedicar seus estudos as ‘lições de Lyon’ que estão muito mais em conformidade com os fundamentos espirituais do Regime do que o tratado em si”.


É inegável que Jean-Baptiste Willermoz, considerado o “arquiteto central” do nosso rito, foi profundamente influenciado pela doutrina de Martinez de Pasqually, de quem foi discípulo. No entanto, Willermoz submeteu essa doutrina a um rigoroso processo de cristianização, adaptando-a à luz da fé cristã tanto quanto possível. Esse processo de transformação foi necessário para corrigir a cristologia defeituosa de Pasqually, marcada por graves erros teológicos, especialmente no que concerne à redenção e à verdadeira natureza de Nosso Senhor Jesus Cristo.


As chamadas "lições" refletem o esforço deliberado de Willermoz e seus companheiros para harmonizar os conceitos, não palatáveis a um cristão em consonância com sua profissão de fé, impressos na Maçonaria Retificada, com os fundamentos do autêntico magistério cristão. Nelas, as influências esotéricas provenientes da doutrina de Pasqually são filtradas e adaptadas para se conformar, na medida do possível, à reta doutrina de herança apostólica. Esse processo de depuração doutrinária foi essencial para garantir que a Maçonaria Retificada permanecesse fiel à sua essência cristã e ao seu propósito original. Willermoz entendia que a integridade da Ordem dependia de sua capacidade de discernir entre os princípios do Cristianismo e os elementos esotéricos introduzidos por Pasqually, preservando o que fosse compatível com a ortodoxia cristã e rejeitando o que lhe fosse contrário.


Tendo já demonstrado, no artigo “A Doutrina do Regime Retificado e o Pensamento Cristão Ortodoxo”, a conformidade da doutrina do R.E.R. com a sã doutrina cristã, passamos agora a um estudo comparativo entre os ensinamentos do Tratado da Reintegração dos Seres e os princípios cristãos estabelecidos pelo Magistério e pelos Padres da Igreja. Esse esforço de esclarecimento é essencial para que os membros do R.E.R. possam desenvolver uma prática fiel e coerente com os fundamentos do Cristianismo. A análise que propomos não apenas identificará incoerências e possíveis conflitos, mas também buscará evitar que ambiguidades filosóficas ou teológicas comprometam a correta observância da Maçonaria Retificada. Nosso objetivo é assegurar que a Ordem continue a florescer como uma fraternidade dedicada à virtude e ao aperfeiçoamento espiritual, sempre orientada pela luz de Cristo.


Este esclarecimento torna-se ainda mais imprescindível dado ao fato de que alguns irmãos do RER, frequentemente associados ou oriundos de ordens com tendências esotéricas e ocultistas, tentam introduzir no seio do Regime Retificado uma influência total da obra de Martinez de Pasqually, desconsiderando sua incompatibilidade com os princípios cristãos. Essa tentativa de assimilação não apenas ameaça a pureza do rito, mas também pode desviar os mais incautos ou supersticiosos da verdadeira fé, impedindo-os de desfrutar plenamente dos benefícios espirituais que a Maçonaria Retificada oferece. Em vez de fomentar a virtude e a firmeza na fé cristã, tais práticas podem afastar os indivíduos da verdadeira essência do cristianismo, comprometendo a vivência autêntica da virtude diante dos homens, da religião e de Cristo. A integridade do rito retificado deve ser preservada para assegurar que os valores cristãos nele existentes sejam fortalecidos e que a prática maçônica continue a ser uma fonte de verdadeira luz e de verdadeira edificação espiritual.


Nos próximos textos, aprofundaremos a análise das incoerências e das possíveis armadilhas espirituais que podem emergir de uma interpretação inadequada ou aplicação incorreta de algumas das ideias de Pasqually. Nosso objetivo é reforçar a identidade e a missão do R.E.R. como uma ordem maçônica cristã, fiel à sua origem e ao seu propósito de edificar um templo simbólico dedicado à virtude e à verdade. A crítica focará em questões essenciais, como a queda do homem, a natureza de Cristo e o processo de redenção, realizando uma comparação com a ortodoxia cristã para garantir que a prática da Maçonaria Retificada permaneça em consonância com a Verdade revelada em Cristo. Assim, esperamos contribuir para o fortalecimento da fé e da prática cristã dentro da Maçonaria Retificada, assegurando que a Ordem continue a buscar a reintegração do homem com Deus, sempre à luz da Verdade revelada e da tradição cristã.


Iniciemos pois a tarefa a qual nos propomos.


O Tratado de Reintegração inicia-se propondo uma reflexão sobre a origem dos seres espirituais, seu livre-arbítrio e o culto que devem prestar a Deus. Expoe o mesmo:


Antes do tempo Deus emanou seres espirituais para sua própria glória, em sua imensidade divina. Esses seres tinham a exercer um culto que a Divindade lhes fixara por leis, preceitos e mandamentos eternos. Eles eram, portanto, livres e distintos do Criador, e não se pode negar o livre-arbítrio com que foram emanados sem destruir a faculdade, a propriedade e a virtude espiritual e pessoal que lhes eram necessárias para operarem com exatidão dentro dos limites em que deviam exercer sua potência. Era, positivamente, dentro desses limites que esses primeiros seres espirituais deviam render o culto para que foram emanados. Esses primeiros seres não podiam negar nem ignorar as convenções que o Criador fizera com eles, dando-lhes leis, preceitos e mandamentos, posto que era unicamente sobre essas convenções que estava fundamentada sua emanação.


Embora o texto apresentado inclua alguns elementos que estão em conformidade com a sã doutrina cristã, certas noções expostas precisam ser submetidas a um exame mais rigoroso, tanto filosófico quanto teológico. Isso é necessário para evitar interpretações distorcidas que possam comprometer a integridade da fé daqueles que, sendo cristãos, aderem à ordem retificada. Para tanto, é essencial submeter as ideias ao crivo da razão, conforme preconizado pelos grandes mestres da filosofia e da teologia cristã. Com esse espírito crítico, iniciemos a análise do texto.


A "emanação" e a criação no tempo:


O uso do termo "emanação" para descrever a origem dos seres espirituais remete a concepções filosóficas antigas, especialmente ao neoplatonismo, onde a criação é vista como uma série de emanações da Unidade ou do Uno, culminando no mundo material. Plotino, fundador do neoplatonismo, descreve o cosmos como uma sucessão de emanações do Uno, com cada nível de realidade derivando-se do nível anterior em uma espécie de cadeia contínua. Essa visão não encontra apoio na doutrina cristã que nos ensina que o conceito da criação “ex nihilo”, como afirma Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica, I, q. 45, a. 2:  "Deus, enquanto causa universal do ser, não pode criar algo de uma substância preexistente, pois então seria limitado na sua ação".


Torna-se ainda necessário considerar a perspectiva agostiniana sobre a criação e a existência do tempo. Santo Agostinho, em suas Confissões (XI, 13-14), argumenta que o tempo não existe independentemente da criação; tendo começado a existir juntamente com o mundo criado. Para Agostinho, antes da criação, não havia "antes", pois o tempo é uma propriedade do universo criado. Essa visão corrige a concepção neoplatônica de emanação, que sugere uma continuidade temporal entre Deus e a criação. Na doutrina cristã, o tempo teve um início, e esse início coincide com o ato criador de Deus. A noção de emanação, portanto, não só dilui a transcendência divina, como também desvirtua a relação correta entre Deus, o tempo e a criação.


A noção de emanação, além de sugerir uma continuidade ontológica entre Deus e as criaturas, também dilui a transcendência divina, aproximando-se perigosamente do panteísmo, onde tudo é visto como uma manifestação da essência divina. Para o magistério cristão, tal concepção é inaceitável, pois nega a absoluta distinção entre o Criador e a criatura. Santo Tomás, na sua crítica ao neoplatonismo, sublinha que Deus, sendo ipsum esse subsistens - o Ser Subsistente por Si mesmo - cria seres que são totalmente distintos d'Ele, conferindo-lhes a existência como um dom gratuito e contingente. Aceitar a emanação como explicação da origem dos seres espirituais seria comprometer essa distinção fundamental e incorrer em erros graves que afetam a compreensão correta da natureza de Deus.


Livre-arbítrio e sua fundamentação racional:


Pasqually aponta que os seres espirituais são dotados de livre-arbítrio, mas falha ao não explorar adequadamente as implicações filosóficas desta liberdade. Kant, em sua Crítica da Razão Prática, argumenta que o livre-arbítrio é a base da moralidade, pois sem ele não poderia haver responsabilidade moral. Entretanto, ao contrário da visão kantiana, que limita o conhecimento humano ao fenômeno e exclui o acesso ao noumeno, a tradição cristã ensina que o livre-arbítrio é orientado teleologicamente para o bem, que é a própria essência de Deus.


A liberdade dos seres espirituais, portanto, não é uma liberdade arbitrária ou indiferente ao bem; é uma liberdade ordenada para a realização da vontade divina. Os anjos que permaneceram fiéis a Deus escolheram, racionalmente, o bem supremo. Aqueles que se rebelaram, liderados por Lúcifer, fizeram-no através de um uso pervertido do livre-arbítrio, optando por um bem aparente em detrimento do Bem absoluto. Isso ilustra que o livre-arbítrio, embora real, está sempre sujeito ao crivo da razão, que deve guiar a vontade na direção correta. A liberdade, como ensina a tradição cristã, deve sempre ser entendida à luz da verdade, pois, como disse Nosso Senhor: "A verdade vos libertará" (Jo 8,32). A liberdade sem verdade se torna uma mera arbitrariedade, conduzindo inevitavelmente ao erro e ao mal.


A obediência e o culto racional:


A noção de "convenções" entre Deus e os seres espirituais, como apresentada no texto, é não apenas problemática, mas também profundamente inadequada do ponto de vista teológico. Platão, em sua obra Leis, sugere que as convenções humanas são acordos mutáveis e, por isso, não podem ser absolutas. Aristóteles, por sua vez, argumenta na Ética a Nicômaco que a lei deve ser uma ordenação da razão para o bem comum, e não um acordo volátil. Aplicar o conceito de convenção a Deus e aos seres espirituais é, portanto, inadequado, pois reduziria a Lei divina a um mero acordo contingente, quando, na verdade, a Lei divina é uma expressão imutável da vontade de Deus, conforme explicado por Santo Tomás: "A lei eterna é a própria razão de Deus enquanto governa o universo" (Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 1).


O culto que os seres espirituais devem prestar a Deus não é fruto de uma convenção, mas uma resposta natural e racional ao reconhecimento de Deus como o Sumo Bem. A tradição filosófica cristã, particularmente em Santo Agostinho, enfatiza que todo ser racional é chamado a encontrar em Deus sua verdadeira realização. "Nos fizeste para Ti, e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti" (Confissões, I, 1). O culto racional, então, é o movimento da criatura em direção ao Criador, movida pela razão e pelo amor, não por um pacto contratual. A obediência a Deus é, em essência, a realização plena da liberdade da criatura, que encontra na vontade divina o verdadeiro caminho para sua perfeição e felicidade.


Conclusão:


Inspirados em Santo Anselmo que afirmava "fides quaerens intellectum" (fé que busca a inteligência), cremos ser necessário que toda teoria apresentada a nós em nossa jornada iniciática, dita cristã, seja submetida ao crivo da razão. Pasqually falha, até aqui, em demonstrar como as leis e mandamentos divinos, que os seres espirituais devem seguir, são racionalmente fundamentados. Para Santo Tomás, a lei eterna é a ordenação racional do mundo por Deus, e os seres racionais, ao reconhecerem esta ordem, devem aderir a ela por um ato de vontade iluminado pela razão. A tradição filosófica cristã, desde os primeiros Padres da Igreja até os escolásticos medievais, sempre ensinou que a razão e a fé não são opostas, mas complementares. A fé, como dom de Deus, eleva a razão, permitindo-lhe alcançar verdades que, por si só, seriam inacessíveis, mas a razão, por sua vez, oferece à fé uma estrutura coerente e compreensível.


Qualquer tentativa de conceber a obediência dos anjos como fruto de uma "convenção" trivializa a profundidade e a racionalidade do culto devido ao Criador. O magistério cristão ensina que, na ordem da criação, todos os seres racionais são chamados a participar da sabedoria divina, reconhecendo em Deus a causa primeira e o fim último de todas as coisas. Negar essa participação é negar a própria natureza racional da criatura.


I.C.J.M.S.

Que Nossa Ordem Prospere !!!

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