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Da Incompatibilidade Entre o Tratado da Reintegração dos Seres e a Integridade do Magistério Cristão - Parte 2:  Deus, criador de tudo.

Antes de prosseguirmos com nossa série de textos sobre as incompatibilidades entre o Tratado de Reintegração dos Seres, obra inacabada do teurgo Martinez de Pasqually, e os fundamentos do Magistério Cristão, gostaríamos de esclarecer dois pontos mportantes.


O primeiro ponto diz respeito ao entendimento dos textos. Os leitores mais atentos notarão que alguns trechos ou ideias podem se repetir em diferentes textos. Isso ocorre porque muitos leitores chegam aos nossos textos através de mecanismos de busca na internet ou por links compartilhados em plataformas de mensagens, como WhatsApp ou Telegram. Dessa forma, é possível que eles percam partes importantes das explicações fornecidas anteriormente, as quais são essenciais para uma compreensão completa e para uma reflexão frutífera sobre os temas discutidos.


Portanto, não estranhem se encontrarem explicações que já foram apresentadas em textos anteriores. Nossa intenção é garantir que todos os leitores, independentemente de qual artigo tenham acessado por último, tenham uma compreensão clara e completa dos temas abordados.


Já o segundo ponto a esclarecer nos veio de um questionamento de um leitor que afirmou que o Tratado de Reintegração dos Seres transcende ao conceito de que a igreja criou um dogma “só seu” que, em última análise, ninguém sabe se está correto (SIC). Tal questionamento merece uma consideração mais profunda, tanto do ponto de vista histórico quanto teológico.


Primeiramente, é fundamental entender que os dogmas da Igreja não são invenções humanas ou construções arbitrárias. A Igreja, em sua natureza divina e humana, é guardiã da Revelação, não sua criadora. A doutrina cristã está ancorada nas verdades reveladas por Deus, especialmente por meio de Jesus Cristo, e preservadas pela Tradição Apostólica e pela Sagrada Escritura. Quando a Igreja proclama um dogma, ela não o faz como quem estabelece uma teoria ou opinião particular, mas como quem afirma uma verdade divina, revelada por Deus e discernida sob a assistência do Espírito Santo ao longo dos séculos.


A Bíblia é clara quanto ao papel da Igreja enquanto coluna e sustentáculo da verdade (cf. 1 Tm 3,15). A infalibilidade do Magistério, que define os dogmas, está fundamentada na promessa de Cristo de que as portas do inferno não prevaleceriam contra sua Igreja (cf. Mt 16,18) e na garantia de que o Espírito Santo conduziria os apóstolos e seus sucessores a toda a verdade (cf. Jo 16,13). Os dogmas são, portanto, uma expressão dessa verdade revelada, não construções humanas que podem estar sujeitas a erro.


A ideia de que "ninguém sabe se os dogmas estão corretos" revela, falamos com máximo respeito e todo carinho possível a nosso leitor, um mal-entendido sobre o papel da Igreja e da doutrina cristã. A Igreja, em comunhão com os Concílios Ecumênicos, sob a liderança do Sucessor de Pedro, não propõe dogmas como hipóteses que podem ser questionadas à luz de novas revelações esotéricas ou místicas. Ao contrário, ela proclama e preserva a verdade revelada, aquela que nos foi confiada pelo próprio Deus e que permanece imutável. O cristianismo é uma fé pública, revelada por um Deus que se fez carne, e cujas verdades fundamentais estão abertas ao escrutínio da razão e da história. Não há "mistério oculto" a ser desvendado fora do que Deus quis revelar plenamente em Cristo.


Quanto à suposta transcendência do Tratado de Reintegração dos Seres, é preciso entender que, ao comparar uma obra esotérica ou mística com o Magistério da Igreja, estamos tratando de dois domínios muito distintos. O tratado de Martinez de Pasqually, perdoe-nos os mais inclinados a credulidade cega, representa uma tentativa humana de interpretar o cosmos e o destino espiritual do homem, por meio de categorias esotéricas que, de muitas maneiras, se afastam ou contradizem a Revelação Cristã. Ele não pode, de forma alguma, transcender o que a Igreja proclama como verdade. Se há algo que transcende a humanidade, é a própria Revelação Divina e o Mistério de Cristo, já plenamente revelado. Como ensina o Apóstolo Paulo, em Cristo estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (cf. Cl 2,3). Nada mais pode transcender a plenitude da Revelação trazida por Ele.


A tentativa de certos sistemas esotéricos, como o de Pasqually, de apresentar um "conhecimento superior" ou de transcender as verdades proclamadas pela Igreja acaba sendo uma reinterpretação humana que, por sua própria natureza, é falível e sujeita ao erro. O cristianismo não se apoia em especulações ou conhecimentos ocultos, mas na revelação concreta e histórica de Deus em Jesus Cristo. Quando alguém se afasta dessa verdade, corre o risco de ser "jogado de um lado para outro por todo vento de doutrina", como nos adverte São Paulo (Ef 4,14).


Portanto, a suposição de que os dogmas da Igreja são apenas invenções questionáveis ou que o Tratado de Reintegração dos Seres "transcende" essas verdades deve ser vista com cautela. Como apologeta cristão, reafirmamos que o Magistério não é uma construção de poder ou de controle, mas o exercício da autoridade confiada à Igreja por Cristo para guiar seu rebanho na verdade. Não estamos diante de meras teorias ou opiniões, mas de verdades imutáveis, reveladas pelo próprio Deus para nossa salvação.

A fé cristã não se baseia em dúvidas ou conjecturas, mas em verdades que nos foram reveladas com clareza e firmeza. Se há incerteza, ela está no coração humano que, afastado da luz de Cristo, busca explicações em lugares errados. Como São Pedro nos exorta: "Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna" (cf. Jo 6,68). A Igreja, portanto, é o canal fiel dessas palavras, e os dogmas são a expressão da verdade que nos guia, infalivelmente, no caminho da salvação.


Feitas tais considerações, voltemos a nossos objetivos.


O Tratado de Reintegração dos Seres segue propondo uma reflexão sobre Deus como criador de todas as coisas.


Perguntareis o que esses primeiros seres eram antes de sua emanação divina, se existiam ou se não existiam. Eles existiam no seio da Divindade, mas sem distinção de ação, de pensamento e de entendimento específico. Eles podiam agir ou sentir unicamente pela vontade do Ser superior que os continha e no qual tudo era movido; o que, verdadeiramente, não se pode chamar de existir. Entretanto, essa existência em Deus é de absoluta necessidade; é ela que constitui a imensidade da potência divina. Deus não seria o pai e o senhor de todas as coisas, se não tivesse inata em si uma fonte inesgotável de seres que ele emana por sua vontade e quando lhe apraz. É por essa multidão infinita de emanações de seres espirituais para fora de si que ele tem o nome de Criador e as suas obras, o de criação divina espiritual e animal espiritual temporal.


Aqui, Pasqually propõe uma visão sobre a criação divina que envolve a ideia de que os seres espirituais existiam indistintamente no seio da Divindade antes de sua "emanação". Sugere ainda que Deus, sendo uma "fonte inesgotável de seres", é Pai e Senhor de todas as coisas por causa de Sua capacidade de emanar esses seres conforme Sua vontade. Olhemos isso mais de perto:


A Imutabilidade Divina e a Existência Indistinta em Deus:


A sugestão de que os seres espirituais existiam em Deus antes de sua emanação, mas de forma indistinta, sem ação, pensamento ou entendimento específico levanta sérias questões teológicas, pois parece implicar que Deus possuía em Si um potencial não realizado, o que contraria a doutrina da imutabilidade divina. Deus, conforme nos ensina o magistério cristão, é actus purus, ou seja, ato puro, sem qualquer potencialidade. Sendo ipsum esse subsistens (como dito anteriormente),  não pode conter em Si qualquer forma de mudança ou desenvolvimento. Se os seres espirituais existissem indistintamente em Deus como potencialidades, isso implicaria que Deus não seria plenamente realizado em Sua essência, o que é inaceitável do ponto de vista da teologia cristã. Santo Agostinho, em suas obras, refuta essa ideia ao afirmar que Deus é absolutamente imutável e que qualquer mudança ou desenvolvimento a que estivesse submetido implicaria imperfeição na divindade.


A Paternidade Divina e a Fonte Inesgotável de Seres:


O Tratado de Reintegração dos Seres parece considerar que a paternidade e a soberania de Deus dependem de Sua capacidade de emanar seres espirituais de uma "fonte inesgotável" dentro de Si. Essa perspectiva é enganosa e conduz a uma compreensão equivocada do que é a paternidade divina. Na tradição cristã, Deus é Pai, principalmente, em relação ao Filho, que é gerado eternamente de Sua própria substância, conforme professado no Credo Niceno-Constantinopolitano: "Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos". A paternidade de Deus, portanto, não está fundamentada na criação ou emanação de seres, mas na relação eterna e intratrinitária entre o Pai e o Filho. Santo Tomás de Aquino esclarece que a paternidade divina não se baseia em uma necessidade de emanar seres, mas é uma expressão da relação perfeita entre as Pessoas da Santíssima Trindade (Suma Teológica, I, q. 27, a. 2).


Além disso, a ideia de que Deus é uma "fonte inesgotável de seres" pode levar o cristão a uma confusão com doutrinas panteístas ou emanacionistas, que foram rejeitadas pelos Padres da Igreja. Santo Irineu de Lyon, por exemplo, refutou as heresias gnósticas que propunham uma emanação contínua de seres a partir da divindade, reafirmando que Deus criou todas as coisas de maneira livre e soberana, sem que isso implicasse uma diminuição ou transbordamento de Sua essência (Contra as Heresias, II, 1-2).


O Título de Criador: 


O Tratado de Reintegração dos Seres dá o título de Criador a Deus como resultado de Sua capacidade de emanar uma "multidão infinita de seres" espirituais e animais. No entanto, essa concepção precisa ser revisada à luz da verdadeira natureza do ato criador de Deus. A criação, no pensamento cristão, é um ato singular e soberano de Deus, que traz à existência aquilo que antes não existia, sem qualquer necessidade de emanação ou transbordamento. A criação não é um processo contínuo de emanação, mas um ato livre da vontade divina; como bem esclareceu Santo Tomás de Aquino: "Deus não precisa criar coisa alguma, mas o faz por Sua bondade e sabedoria" (Suma Teológica, I, q. 44, a. 1). Assim, o título de Criador não deriva de uma capacidade inata de emanar seres, mas da ação livre e amorosa de Deus, que traz à existência tudo o que existe.


A Tradição Patrística e a Doutrina da Criação: 


Os Pais da Igreja, ao combater heresias que distorciam a natureza de Deus e da criação, sempre enfatizaram a distinção absoluta entre Criador e criatura. Orígenes, por exemplo, ao discutir a criação do mundo, argumenta que Deus, sendo perfeito, não criou o mundo por necessidade, mas por livre escolha, e que o mundo é radicalmente distinto da divindade. A Tradição Patrística rejeita qualquer ideia de que o mundo ou os seres espirituais sejam extensões da essência divina, reafirmando a criação ex nihilo como a verdadeira doutrina cristã. Essa distinção é fundamental para evitar confusões com filosofias emanacionistas ou panteístas que comprometem a transcendência de Deus.


Conclusão:


O texto analisado propõe uma visão teológica que, ao ser submetida ao crivo da razão e à ortodoxia cristã, revela sérias inconsistências. Comprometer a imutabilidade divina e aproximar-se de concepções emanacionistas ou panteístas, rejeitadas pelos Padres da Igreja, dilui a diferença entre Criador e criaturas. É necessário rejeitar a visão apresentada no texto caso se queira conservar a verdadeira doutrina cristã, que vê em Deus não apenas o Criador de todas as coisas, mas o Ser absolutamente transcendente, imutável e perfeito, cuja paternidade e soberania não dependem de de processos contínuos, mas de Sua própria essência divina e da relação eterna entre as Pessoas da Santíssima Trindade.


Tenhamos sempre em mente o que disse Robert Amadou: "Caso alguém queira conhecer verdadeiramente as influências e fontes Martinezistas presentes no seio do Regime Escocês Retificado não precisa se debruçar brutalmente sobre o ‘Tratado de Reintegração dos Seres’, bastando para tanto, em primeiro lugar, dedicar seus estudos as ‘lições de Lyon’ que estão muito mais em conformidade com os fundamentos espirituais do Regime do que o tratado em si”.


I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere !!!

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