Prosseguimos então com a série de textos onde demonstramos algumas das incompatibilidades entre o Tratado de Reintegração dos Seres, obra inacabada do teurgo Martinez de Pasqually, e os fundamentos do Magistério Cristão.
No trecho que analisamos hoje, o Tratado de Reintegração dos Seres propoẽ um critério inovador acerca da Essência Divina, construindo uma teorização especulativa sobre a natureza dos seres espirituais e sua relação com o divino. A narrativa descreve uma hierarquia de espíritos emanados da Divindade, organizados em uma enigmática "quátripla essência divina" e divididos em quatro classes, conferindo-lhes virtudes, potências e um suposto conhecimento especial. Esses espíritos ocupariam posições em um círculo denominado "Dominação". Todavia, essa concepção carece de fundamento teológico sólido e levanta sérios problemas quando confrontada com o magistério cristão, em especial com o dogma da Santíssima Trindade, que não admite a multiplicidade de essências divinas, tampouco a existência de seres que compartilhem da natureza divina de forma semelhante à descrita. Diz o Tratado:
Uma quátripla essência divina, quatro classes de primeiros espíritos emanados.
Os primeiros espíritos emanados do seio da Divindade distinguiam-se entre si por suas virtudes, suas potências e seus nomes. Eles ocupavam a imensa circunferência divina chamada vulgarmente Dominação e que tem seu número denário conforme a seguinte figura: — (figura, p. 78, 2o §) —, e é aí que todo espírito superior 10, maior 8, inferior 7 e menor 3 devia agir e operar para a grande glória do Criador. Sua denominação, ou o seu número, prova que a emanação deles vem realmente da quátripla essência divina. Os nomes dessas quatro classes de espíritos eram mais fortes do que os que damos vulgarmente aos querubins, serafins, arcanjos e anjos, que só foram emancipados depois. Ademais, esses quatro primeiros princípios de seres espirituais tinham em si, como dissemos, uma parcela da Dominação divina, uma potência superior, maior, inferior e menor, pela qual conheciam tudo o que podia existir ou estar contido nos seres espirituais que ainda não haviam saído do seio da Divindade. Como, direis, podiam eles ter conhecimento de coisas que ainda não existiam distintamente e fora do seio do Criador? Porque esses primeiros líderes emanados no primeiro círculo, chamado misteriosamente de círculo denário, liam claramente e com plena certeza o que se passava na Divindade, assim como tudo o que estava contido nela. Não deve haver dúvida sobre o que digo aqui, convencendo-se de que só ao espírito cabe ler, ver e conceber o espírito. Esses primeiros líderes tinham conhecimento perfeito de toda ação divina, uma vez que foram emanados do seio do Criador apenas para serem testemunhas diretas de todas as suas operações divinas e da manifestação de sua glória.
Analisemos isso mais de perto:
A Incompatibilidade da "Quátripla Essência Divina" com o Dogma Cristão
A introdução de uma "quátripla essência divina" é especialmente problemática à luz do dogma trinitário, que afirma que Deus é um em essência e três em Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Esta formulação, fundamentada nas definições dos Concílios Ecumênicos de Niceia (325) e Constantinopla (381), foi articulada para salvaguardar a unicidade de Deus, enquanto reconhece as distinções internas no mistério da Santíssima Trindade. A essência divina, segundo a fé cristã, é única e indivisível, e as três Pessoas divinas participam da mesma substância. Não há multiplicidade de essências dentro de Deus.
Nesse contexto, a proposta de uma "quátripla essência" não apenas introduz uma categoria inexistente no pensamento cristão ortodoxo, mas viola diretamente a unidade da natureza divina, levando a uma fragmentação ontológica que compromete um dos pilares mais fundamentais da teologia cristã: a simplicidade de Deus.
A Ameaça à Doutrina da Simplicidade Divina
Ao propor uma "quátripla essência" Pasqually contradiz diretamente a doutrina da simplicidade divina, que sustenta que em Deus não há composição ou divisão. Na filosofia aristotélica, Deus é descrito como actus purus, ato puro, pleno em Sua realização e sem qualquer potencialidade não realizada. Aristóteles nega qualquer possibilidade de composição em Deus, pois isso implicaria partes distintas que se uniriam para formar um todo. Essa noção foi amplamente aceita pela escolástica cristã, especialmente por São Tomás de Aquino, que argumenta que Deus, sendo ato puro e simples, não pode ser composto de diferentes essências ou potências. Qualquer multiplicidade ou divisão em Deus comprometeria a Sua perfeição, o que é incompatível com o Ser absolutamente perfeito que é Deus (Suma Teológica, I, q. 3, a. 7).
Além disso, a simplicidade divina está intrinsecamente ligada à imutabilidade de Deus. Se Deus fosse composto por múltiplas essências, Ele estaria sujeito à mudança, o que contraria a doutrina cristã da imutabilidade divina, que ensina que Deus é imutável em Sua essência e em Suas operações (cf. Suma Teológica, I, q. 9, a. 1). Portanto, a ideia de uma "quátripla essência" proposta por Martinez em seu tratado, introduz um perigo sério à compreensão tradicional de Deus, abrindo espaço para erros filosóficos e teológicos.
Hierarquia Celestial e a Doutrina Cristã dos Anjos
Além das questões referentes à essência divina, o Tratado de Reintegração dos Seres apresenta uma especulação sobre a existencia de uma hierarquia de seres espirituais que emanariam da "quátripla essência", superiores aos anjos tradicionais, como querubins, serafins e arcanjos, que teriam sido criados posteriormente. Essa hierarquia, no entanto, não encontra fundamento na doutrina cristã. São Dionísio, o Areopagita, em sua obra "A Hierarquia Celestial", descreve a criação dos anjos como os primeiros seres espirituais, organizados em nove coros, que refletem a ordem divina sem implicar em uma divisão essencial na Divindade.
Especular acerca de uma hierarquia que transcenda a criação angélica, fundamentando-se em uma "quátripla essência", é apoiar-se no que há de pior nas teorias esotéricas e neoplatônicas, substituindo a tradição cristã pelos devaneios destas. Tais sistemas, postulam emanações sucessivas do Uno, cada uma menos perfeita que a anterior, que são totalmente ncompatíveis com a doutrina formulada pelos grandes pensadores da Igreja. A Tradição e a teologia tomista, por exemplo, reconhecem a unicidade da criação divina e sua perfeita ordem, sem necessidade de emanações ou classes superiores.
Conhecimento dos Seres Espirituais e a Imutabilidade de Deus
O Tratado atribui a esses seres espirituais um "conhecimento perfeito de toda ação divina", insinuando que eles podiam "ler claramente" a essência divina. Todavia, essa ideia entra em conflito com a teologia cristã, que ensina que apenas Deus possui um conhecimento pleno de Si mesmo. Santo Tomás de Aquino afirma que, embora os anjos possuam um elevado grau de conhecimento, eles não podem compreender a essência divina em sua totalidade, pois o conhecimento divino é infinito e o dos anjos, finito (Suma Teológica, I, q. 12, a. 4).
Além disso, a ideia de que esses seres espirituais possuíam uma "parcela da Dominação divina" é teologicamente insustentável. A doutrina cristã ensina que as criaturas podem participar do bem divino, mas nunca da própria essência divina. Uma participação substancial na essência de Deus implicaria em panteísmo, heresia rejeitada veementemente por Santo Tomás de Aquino e por diversos outros pensadores católicos.
Criação ex Nihilo e o Problema do Emanacionismo
A ideia de uma "quátripla essência" também se aproxima de concepções neoplatônicas de emanação, que afirmam que os seres emanam do Uno de forma necessária. No entanto, a teologia cristã ensina que Deus cria o mundo por um ato livre e soberano, não por necessidade (Suma Teológica, I, q. 45, a. 1). A criação ex nihilo é um ato livre e voluntário de Deus, e não uma processão necessária de Sua essência.
A especulação de que esses seres espirituais emanaram do "seio da Divindade" compromete a distinção clara entre o Criador e a criatura, introduzindo uma processão divina reservada exclusivamente à Trindade. Apenas o Filho procede do Pai, e o Espírito Santo do Pai e do Filho. Qualquer outra processão sugere um colapso entre Criador e criatura, levando à heresia do panteísmo.
O Perigo das Especulações Sem Fundamento
Especulações acerca da natureza de seres espirituais e sua relação com a Divindade, desprovidas de fundamento na Revelação ou na tradição filosófica consagrada, constituem um risco teológico de gravíssima magnitude. A teologia cristã, alicerçada na harmonia entre fé e razão, rejeita veementemente conjecturas que ultrapassam os limites do conhecimento racional e ameaçam a coesão doutrinária. Santo Tomás de Aquino, ao defender a unidade da fé e da razão, alertou contra teorias que, ao desvincularem-se do Magistério e da Filosofia Perene, corrompem a verdade revelada. De maneira semelhante, Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Pura, delineia os limites estritos do entendimento humano ao lidar com o transcendente. Kant alerta que tentar especular além das fronteiras impostas pela razão pura, em áreas inacessíveis à experiência sensível, como o conhecimento da essência divina ou dos seres espirituais, conduz inevitavelmente a paralogismos metafísicos. Essas especulações não só obscurecem a verdade teológica, como também violam a integridade da própria razão, ao incorrer em erros de categorização e raciocínios falaciosos que ameaçam tanto o edifício da fé quanto o da razão reta.
Conclusão
A concepção de uma "quátripla essência divina" e a hierarquia de seres espirituais emanados mostra-se profundamente incompatível com a fé cristã, pois corrompe princípios centrais como a simplicidade divina, a criação ex nihilo, e a distinção intransponível entre Criador e criatura. A doutrina da simplicidade de Deus, tal como defendida por Santo Tomás de Aquino, sublinha que a essência divina é indivisível, impossibilitando qualquer multiplicidade de essências. Além disso, a criação a partir do nada, que reflete o ato livre e soberano de Deus, não pode ser confundida com emanações necessárias ou graduações ontológicas entre criaturas e a Divindade. Esses conceitos esotéricos, ao introduzirem divisões no ser divino e sugerirem múltiplas essências, minam diretamente a unicidade de Deus e Sua imutabilidade, características fundamentais da teologia cristã.
A exclusividade da processão trinitária — onde o Filho procede do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho — reafirma que nenhuma outra processão interna ou externa pode ocorrer na Divindade sem comprometer a integridade da doutrina trinitária. O conhecimento limitado das criaturas, mesmo dos seres espirituais mais elevados, confirma que é impossível que estes participem substancialmente da essência divina, contrariando qualquer noção panteísta ou emanacionista que sugira tal participação.
Valendo-nos mais uma vez de Kant, em sua Crítica da Razão Pura, encontramos advertencias sobre os perigos da razão quando tenta ultrapassar seus próprios limites, especialmente ao adentrar no domínio do numênico — aquilo que está além do alcance da experiência sensível. Especular sobre a essência divina, ou sobre a natureza de seres espirituais, sem base na Revelação ou em um uso adequado da razão, leva inevitavelmente ao que Kant chamaria de "ilusões transcendentais", construções mentais que resultam em paralogismos e erros de categoria. Essas ideias, ao distorcerem tanto a teologia revelada quanto a ordem da criação, devem ser rejeitadas como heréticas, reafirmando a primazia inviolável da Revelação divina e da tradição filosófica cristã. A integridade da fé exige uma rejeição firme dessas especulações, restaurando a primazia do ensinamento ortodoxo e da reta razão. I.C.M.J.S. Que Nossa Ordem Prospere !!!
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