Alguns termos, a medida que passam os tempos, adquirem má reputação. Tal é o caso de termos como “doutrina” e “dogma” e seus derivados como “doutrinário”, “doutrinal” ou “dogmático”. Muitas vezes, basta mencionar um desses termos e já nos vemos obrigados a confrontar os “soldados das polícias do pensamento” , as “patrulhas do politicamente correto”, isso mesmo no seio de instituições cujo pleno debate das idéias deveria ser elevado a um status quase divino. Todavia, não é isso que temos visto. Pelo contrário, tais termos às vezes parecem ser encarados como um verdadeiro tabu e, sem dúvida, não deveriam ser.
A raiz indo-européia dôk, permitiu a construção de verbos idênticos quanto à forma (mas não quanto a seu sentido): dokeô em grego e doceo em latim e todos os seus derivados: dogma (e os verbos construídos sobre ele), dokeuô, dokimazô, doxa (e seus derivados) em grego, e em latim docilis, doctor, doctrix, doctrina, doctus, documentum, e ... dogma.
Vejamos mais a respeito.
O dokeô grego tem três significados principais e entre eles um nos interessa imensamente.
Assemelhar-se, parecer, ter a aparência de … (É a partir desse sentido que se veio a nomenclaturar o “docetismo” a heresia que professava que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente. Não existiam "docetas" enquanto seita ou religião específica, mas como uma corrente de pensamento que atravessou diversos estratos da Igreja e também de uma outra religião abraâmica);
Pensar, crer, imaginar;
Julgar adequado, decidir.
A palavra dogma está diretamente relacionada a dokeô, tendo duas acepções:
Opinião, doutrina filosófica - relacionando-se com o segundo significado;
Decisão, Decreto - relacionando-se com o terceiro significado. (É assim que a expressão senatus consultum, decreto do senado (romano) se converteu graças ao historiador Polibio em dogma tês sunklêtou).
O doceo latino tem um significado distinto do dokeô grego mas não deixa de estar relacionado com esse; e significa:
ensinar,
instruir,
ensaiar,
fazer ver,
Ele está em relação evidente com o primeiro e o segundo sentido do verbo grego, com uma interessante matiz: Aquilo que se pensa, aquilo que se crê, aquilo que se imagina é exatamente aquilo que se transmite.
A partir disso passamos a “doutrina” que tem dois significados principais:
Conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas, ensinadas.
Conjunto de princípios que servem de base a um sistema, que pode ser literário, filosófico, político e religioso (princípios esses que são transmitidos).
A rigor poderíamos parar por aqui. No entanto, nos é necessário verificar se a evolução semântica constatada entre o grego e o latim se estendeu também ao francês.
O principado de Dombes, cuja capital era Trévoux, permaneceu independente da França até o ano de 1762. Isso fez com que a censura real não fosse exercida lá, essa falta de jurisdição da França levou numerosos impressores e editores a instalarem-se na cidade. Os jesuítas também se estabeleceram ali, trabalhando em importantes publicações como o ‘Mémoires pour l'Histoire des Sciences & des beaux-Arts’ - muitas vezes chamado ‘Diáriore de Trevoux’ ou ‘Jornal de Trevoux’ - e o famoso ‘Dicionário de Trévoux’ (Dictionnaire universel françois et latin). Esse dicionário foi o primeiro dicionário verdadeiramente enciclopédico em língua francesa, concorrente direto da ‘Enciclopédia de d'Alembert e Diderot’. Teve cinco edições entre 1704 e 1771. Vamos citar a edição de 1738-172 publicada em Nancy, capital do Ducado de Lorena. E por que citar esse dicionário ? Porque ele oferece o estado exato da língua em uso no século XVIII e consequentemente no momento da criação do Regime Escocês Retificado. Nele, o que podemos ler ?
Em doutrina:
Saber;
Erudição;
O que se contém nos livros;
Sentimentos particulares dos autores e das sociedades;
Em dogma:
Máxima, axioma, princípio ou proposição em que se constituem as ciências;
Se diz particularmente dos pontos relativos a religião.
Estas duas definições são demasiadas curtas e pouco satisfatórias mas já podemos observar que, sem dúvida alguma, a palavra ‘dogma’ começa a se diferenciar de ‘doutrina’ assumindo um caráter muito mais absoluto, de maior autoridade.
Se voltamos nossa atenção o século XIX, encontramos o “Grand dictionnaire universel du XIXe siècle”, muitas vezes chamado “Grand Larousse du dix-neuvième”. É aqui que encontramos as melhores e mais completas definições dos termos “doutrina” e “dogma” tal qual temos utilizado neste blog e tal qual temos visto em nossas fontes de pesquisas em outros blogs, sites e livros sobre o tema Rito Escocês Retificado (salvo naqueles em que os termos são desfigurados por paixão ou ignorância - coisas que geralmente caminham lado a lado).
Citemos então:
Doutrina: “Conjunto de conhecimentos possuídos por alguém. Se dá ordinariamente o nome de “sistema” para as soluções que os filósofos e sábios trazem para problemas teóricos relativos a filosofia e as ciências [...] Reservamos o nome “doutrina” ao conjunto de ensinamentos que tem por objetivo resolver as questões relativas a natureza e ao destino moral do homem. Agora bem, as soluções a essas questões podem ser apresentadas em nome da razão ou inspiradas em nome da Revelação. No primeiro caso elas dão lugar ao nascimento das doutrinas filosóficas; já no segundo, constituem doutrinas religiosas”.
Dogma: “Artigo de crença religiosa ensinado com autoridade e apresentado como sendo uma certeza absoluta. Por extensão: opinião, doutrina qualquer ensinada como certeza absoluta: dogmas políticos, literários” [...] A definição de dogma se estende e após uma larga análise sobre os dogmas da igreja católica, prossegue: “Os primeiros escritores protestantes denominavam com esse nome as verdades sobre as quais todos os cristãos pareciam estar de acordo.”
Voltando então ao cerne de nossa questão, se afirmamos doutrina como : “Conjunto de ensinamentos que tem por objetivo resolver as questões relativas a natureza e ao destino moral do homem”, então podemos dizer com todas as letras que existe sim uma “doutrina retificada”, dentro do Regime Retificado (e somente nele), pois é exatamente isso que ele nos oferece em seu conjunto de ensinamentos.
De fato, se todos os ramos da maçonaria ensinam lições morais, essas lições se relacionam, no caso da maçonaria retificada, com a natureza e o destino moral do homem. E é neste momento, mais do que nunca, que devemos recordar a famosa frase de Joseph de Maistre ( em seu Memórias ao Duque de Brunswick): “O grande objetivo da maçonaria será a ciência do homem”.
Tal doutrina, porém, é de natureza filosófica, melhor dizendo: metafísica. E ainda que seja iluminada pela religião, ela não é de natureza religiosa. Ela não possui caráter dogmático, reservado unicamente as verdades religiosas que são: “ensinadas com autoridade e apresentadas como sendo uma certeza absoluta”. Crer ou não nessas “verdades” não altera em estritamente nada seu caráter próprio.
E vejam o quão importante é o que vou dizer agora. Conceber um Regime Escocês Retificado dogmático, mesmo que este preserve em seus ensinamentos os dogmas centrais do cristianismo, ou esvaziá-lo da preservação de tais dogmas é, no mínimo, fruto de corrupção semântica ou de total e proposital perversão, utilizada por alguns para dar um giro completo no rito, transformando-o naquilo que ele não é: algo dogmático, por um lado, ou vazio dos conceitos centrais da fé cristã, por outro.
Diz-se que absoluto é “aquilo que depende apenas de si próprio, não se submete a quaisquer condições e não tem restrições”. Pelo contrário, “o que tem uma natureza dependente e não existe por si mesmo” é relativo. O R.E.R. é filho da razão, e embora a razão seja cristã em sua natureza (tal qual afirmou São Justino Mártir: "O Logos é a Razão preexistente, absoluta, pessoal, e Cristo é a sua personificação, o Logos encarnado. Tudo o que é racional é cristão, e tudo o que é cristão é racional.”), ela depende de nosso intelecto e esse de nossos sentidos, tal qual postulou Aristóteles: nossos pensamentos não surgem do contato de nossa alma com o mundo das ideias, mas da experiência sensível. "Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos", dizia o filósofo. Assim o R.E.R, trata de absolutos mas também de relativos… Ficando no campo do Absoluto apenas os dogmas cristãos que ele preserva em si...
Não existe uma religião maçônica e é quase impossível conceber que algum dia algo do tipo venha a existir. Em contrapartida, para um maçom dizer-se cristão, deve aderir a uma série de dogmas que lhe são impostos, não pela maçonaria, mas pela sua religião.
E que dogmas seriam esses ? A resposta nos vem, obviamente, da literatura cristã. Ficamos pois com a definição dos primeiros escritores protestantes: “Verdades sobre as quais todos os cristãos estão de acordo”. E já que a maçonaria retificada é cristã, embora não de forma confessional mas ecumênica, são em número de três as verdades absolutas que ela preserva no seio de seu ensinamento (afirmar algo além delas é mergulhar em hermenêuticas particulares e afirmar algo menos que elas é descaracterizar-se como cristão):
A Doutrina da Santíssima Trindade, Pai , Filho e Espírito Santo.
A dupla natureza de Cristo, Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem.
A ressurreição dos mortos.
Todo resto são especulações, lícitas caso se queira, mas não para a maçonaria.
Fontes:
François Var, Jean - Conferencia en la festividad de san Gregorio Palamás.
Portal del Guajiro
Lexicon - Dicionario Teológico enciclopédico
I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere !!!
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