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O Cristianismo Transcendente - Joseph de Maistre

Atualizado: 16 de out. de 2020


Memória dirigida ao Duque Ferdinand de Brunswick-Lunebourg, Grão Mestre da Maçonaria Escocesa da Estrita Observância, por ocasião do Convento de Wilhelmsbad - 1782


Finalmente chegamos ao Terceiro Grau [Classe Secreta] cujo alvo é o Cristianismo Transcendente. Parece oportuno que a maioria dos irmãos cujas luzes e talentos tornaram dignos no Segundo Grau, passem ao Terceiro, pois todo homem educado na fé cristã ficará encantando por encontrar a solução das diversas dificuldades que os afligem nos conhecimentos que possuímos.


Os irmãos admitidos na Classe Superior terão por objeto de seus estudos e de suas reflexões mais profundas as investigações dos fatos e os conhecimentos metafísicos. Este não é o lugar para examinarmos até que ponto se pode estabelecer pelo simples raciocínio a verdade da doutrina que professamos. Mas não é estranho que a descoberta dos fatos possam nos proporcionar os maiores motivos para a credibilidade? Tudo é mistério nos dois Testamentos e os eleitos de uma ou de outra Lei não eram outra coisa a não ser verdadeiros iniciados. Há pois que se perguntar a esta venerável antiguidade como ela entende as alegorias sagradas. Quem pode duvidar que este tipo de investigação pode nos proporcionar as armas para lutar contra os escritores modernos que teimam em ver nas Escrituras apenas o sentido literal ? Estes escritores, são facilmente refutados pela expressão Mistérios da Religião que nós utilizamos todos os dias mesmo sem mergulhar em seu significado.


A palavra “mistério” no início não significava outra coisa que não a verdade velada por aqueles que a possuíam. Foi somente por extensão, por assim dizer, por corrupção, o motivo pelo qual se empregou essa expressão a tudo o que está oculto, a tudo que é difícil de compreender. É nesse sentido que dizemos agora que a geração é um mistério e que Marco Aurélio costumava dizer: “a morte é, tal qual o nascimento, um mistério da natureza”.


Esse sentido do termo “mistério” não foi suficiente para Igreja latina, que passou a utilizar o termo “sacramento” para designar os sete Mistérios por excelência.


Quiçá parecerá infinitamente provável a Vossa Alteza Sereníssima que caso nossos teólogos quisessem refletir atentamente no fato de que as palavras Mistério, Sacramento, Sinal e Figura são rigorosamente sinônimos, logo nos levariam a assinar um acordo sobre os pontos que dividem nossas comunhões.


Parece que não precisamos de um dicionário etimológico para refutar os partidários do “ao pé da letra”. Como poderiam resistir ao sentimento unânime dos primeiros cristão , que se regiam completamente pelo sentido alegórico ? Sem dúvida que eles levaram esse sistema demasiado longe, mas, segundo a observação de Pascal, do mesmo modo que os falsos milagres provaram os verdadeiros, igualmente o abuso das explicações alegóricas acaba é anunciando que essa doutrina tinha sim uma base real, a qual perdemos muito cedo...


Com que direito podemos contradizer toda a Antiguidade Eclesiástica que nos permite enxergar tantas verdades escondidas sob a forma de alegorias ? “Os Antigos intérpretes da Igreja - nos diz Santo Anastácio Sinaita - consideravam o relato de Moisés sobre a obra da criação em seis dias de uma forma alegórica e destacaram várias heresias nascidas unicamente do fato de terem tomado demasiadamente ao “pé da letra” aquilo que o Gênesis relata sobre Deus e o Paraíso Terrestre”.


Outro escritor eclesiástico disse também que “Alguns hereges sustentaram que não se deveria dar ao Antigo Testamento um sentido místico e alegórico diferente do que oferecem as coisas em si…”. Mas se nós seguíssemos tal opinião isso culminaria em um monte de absurdos… deve-se sim explicar os livros do Antigo Testamento, não apenas de forma literal, mas também de forma figurada e alegórica e descobrir-lhe o verdadeiro sentido.


É ainda mais surpreendente que, nesse assunto, a Sinagoga não pensava de forma diferente da Igreja. O historiador Josefo nos adverte, antes de tratar da antiguidade de sua nação, que “Moisés já a explicou alegoricamente quando se fez necessário; ele serviu-se também de alegorias, embora cautelosamente, e o que disse foi aquilo que descobriu e que não deveria estar escondido; para que pudéssemos nós mesmos entrar em um longo trabalho se quiséssemos desvendar tudo o que, nesses livros, está relacionado a essas diferentes questões”.


Outro testemunho de peso é o do mais sábio e ilustre dos rabinos, o famoso Maimônides:


“Não se deixem seduzir por tudo que contam os sábios sobre o Primeiro Homem, sobre a Serpente, sobre a Árvore da Ciência do Bem e do Mal, sobre o não uso de vestimentas, não pensem que esses objetos tenham realmente existido dessa forma. [...] Se prestarem atenção se darão conta dos erros e falsidades de tudo o que dizem a respeito, desconheciam a lei e a história da criação já que tomaram o sentido literal e forjaram todas essas fábulas. [...] Não se deve tomar ao pé da letra, como faz o vulgo, o que está contido no Bereshit (Gênesis) sobre a história da criação. Se não fosse assim, os sábios não teriam envolto tais ensinamentos em tantas parábolas, com tanto cuidado. Não teriam sido tão atentos para impedir que se divulgasse isso ao povo ignorante. Pois quando tomado literalmente, o que se resulta a partir disso são preconceitos que degradam a Natureza Divina e perturbam os fundamentos da Lei, dando origem a heresias…”.


Que vasto campo está aberto aos cuidados e a perseverança dos GP...Que uns mergulhem com valor nos estudos a fim de multiplicar nossos livros e trazer clareza àqueles que já possuímos. Que outros, cujo gênio é dado a contemplações metafísicas, busquem na natureza das coisas as provas de nossa doutrina. Que finalmente outros (e queira Deus que sejam muitos) nos digam o que aprenderam com esse Espírito que sopra onde quer, como quer e quando quer.


Notas:

  • Joseph de Maistre se refere a Segundo Grau e Terceiro Grau tendo em mente a Segunda Classe e Terceira Classe.

  • Toda a referência sobre Transcendência Cristã aqui exposta nos leva a crer que ele alude a capacidade de se passar da letra da Escritura, por meio de sua alegoria, para o Espírito de Verdade que Ela contém.

Explicando sua linguagem como alegórica e os termos empregados como homônimos, Maimônides resume o primeiro capítulo do Gênesis da seguinte forma:

  1. Deus criou o universo produzindo no primeiro dia o reshit, ou Inteligências, do qual as esferas se derivaram sua existência e movimento e assim tornou-se a fonte da existência de todo o universo.

  2. Este universo consistia primeiro no caos e nos quatro elementos; mas, através da influência das esferas e mais diretamente através da ação da luz e das trevas, sua forma foi desenvolvida.

  3. Nos cinco dias subseqüentes vieram a existir os minerais, plantas, animais e os seres intelectuais.

  4. O sétimo dia, no qual o universo foi governado pela primeira vez pelas leis naturais que ainda continuam em operação, foi abençoado por Deus, que o projetou para proclamar a creatio ex nihilo.


O relato do pecado de Adão é interpretado por Maimônides como uma exposição alegórica da relação entre sensação, intelecto e faculdade moral; os três filhos de Adão são uma alusão aos três elementos do homem - o vegetal, o animal e o intelectual.


I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere !!!



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