“A imensidão divina, lugar incriado, infinito e sem limites, que cresce sem cessar, e crescerá sem fim pela multiplicidade de seres emanados, destinados a habitá-la; é a permanência da unidade eterna que a enche com seu esplendor e com sua divina Luz, que é o Centro, a circunferência e o todo. É deste Centro incompreensível onde Deus vê tudo, Conhece tudo, antevê tudo, abraça tudo, dirige e governa todas as coisas por sua Vontade, por sua Sabedoria, por sua Providência, e governa soberanamente pelo seu Verbo todo poderoso.” - J-B. Willermoz, Doutrina, Instrução Particular e Secreta a meu Filho, 1818, composta por nove cadernos, “Divina doutrina de Moisés”
A noção de um Deus Criador que a partir do NADA (creatio ex nihilo) erigiu todas as coisas, tal como afirmam os primeiros versículos das Sagradas Escrituras (no caso: Gen 1), se faz claramente presente na oração de abertura dos trabalhos do Regime Escocês Retificado desde o Grau de Aprendiz Maçom; oração essa que dirige ao “Grande Arquiteto do Universo” a homenagem daqueles que estão reunidos em Sua presença, designando-O segundo uma terminologia surpreendentemente carregada de referências metafísicas relativas à noção de ser:
“Grande Arquiteto do Universo, Ser Eterno e infinito, que és a bondade, a justiça e a própria verdade; tu que pela tua palavra poderosa e invencível deste o ser a tudo o que existe...”. - Excerto do Ritual de Aprendiz Maçom.
Esta terminologia, original e singular, é usada em muitos outros lugares dos rituais e textos do Regime Maçônico e Cavaleiresco fundado por Jean-Baptiste Willermoz (1730-1824), em particular na Regra Maçônica, em seu Artigo Primeiro que diz:
“A tua primeira homenagem pertence à Divindade. Adora o Ser cheio de Majestade que criou o Universo por um ato da Sua Vontade, que o conserva pelo efeito da Sua Ação contínua, que enche o teu coração, mas que o teu espírito embotado não pode compreender, nem definir” (1). Excerto da Regra Maçônica, Ritual do Ritual de Aprendiz Maçom.
Mas talvez, as evidências mais esmagadoras ainda, sejam as questões escritas em letras de ouro sobre fundo preto, apresentados sob a forma de quadros destinados à meditação do candidato na Câmara de Reflexão:
“Nesta aparente solidão não creias estar só!
Absolutamente separado dos outros homens, mergulha em ti mesmo e vê se existe um Ser que esteja mais perto de ti que Aquele de que tens a existência e a vida.
Sim. Ele está ao pé de ti. Mas tu estás muito afastado Dele. Tenta pois aproximar-te pelos teus desejos e pela tua submissão às Suas leis. Para alcançar este final feliz, tu deverás fazer um trabalho penoso, demandar, perseverar e sofrer.” - Extrato do Ritual do Aprendiz Maçom.
A Ontologia do Regime Escocês Retificado
Essa recordação, muito bem pontuada, da presença do Ser, nos conduz a uma atmosfera metafísica, ciência que considera, desde Aristóteles (384 - 322 A.C), o ser como ser, dando-nos como objeto de investigação esse “ser“, explicando consequentemente o termo "ontologia" (do grego ὄντος, "ser", e λόγος, "ciência", "discurso") que designa a essência de seu objeto. A definição de Deus como "Ser", enquanto Criador de todas as coisas, constitui, além disso, em Jean-Baptiste Willermoz, uma notável continuidade de seu pensamento, uma vez que nele encontramos reflexões sobre o tema numa data relativamente tardia, nos textos que receberam o título genérico de: «Doutrina de Moisés», com esta menção: “Doutrina, Instrução particular e secreta a meu filho, 1818”
Dentro desta instrução nós encontramos a definição abaixo, que completa e explica o sentido da expressão empregada nos rituais da Ordem, nos quais Deus é descrito como “Ser Eterno e Infinito”:
“Deus é puro Espírito, incorporal, sem nenhuma forma nem figura, Eterno e infinito, sem começo e sem fim, é o Ser dos seres. Existente por si mesmo desde toda a eternidade, é o princípio único e absoluto de tudo o que existe, é um foco imenso de luz, de Glória, de Beatitude; um abismo infinito de Grandeza, de Sabedoria, de Poder e de todas as Perfeições. Contendo em Si mesmo em Sua própria vastidão tudo o que existe ou possa existir; é o germe fecundo, a fonte inesgotável de todas as Produções e emanações divinas, e nada do que existe pode existir fora dele, senão por Ele. Sendo o princípio da própria vida, todo ser imediatamente emanado dele torna-se partícipe de sua própria natureza, imortal, indestrutível, e não pode jamais deixar de ser, porque a vida não pode gerar a morte" (2).
Por este motivo, como querendo manifestar melhor sua função eminente e sua presença, o Ser evocado pelo Regime Retificado, a quem se outorga como atributos o poder, a perfeição, a sabedoria, a glória, «a eternidade» e «a infinitude», recebe em diversas partes dos rituais denominações diferentes : «Ser inefável», «Ser eterno», inclusive, «Ser supremo», sobretudo assinalando com estes termos, apesar do seu perceptível matiz, a dimensão criadora e conservadora de Deus acessível à inteligência dedutiva do homem.
Assim se depreende da leitura destes textos a premente vontade de situar os trabalhos
do sistema elaborado durante o Convento das Gálias (1778) e de Wilhelmsbad (1782), sob os auspícios de um ambiente referencial que toma emprestado seus principais argumentos tanto das noções martinezistas (evidentemente, as noções que versam sobre a Criação (3) ) como dos princípios da metafísica cristã - em particular de um certo escolasticismo medieval pela missão de descobrir o lugar e a atividade de Deus como sendo o primeiro através dos elementos que testemunham um poder ordenador por trás da realidade dos seres e das coisas neste mundo, quando este lugar e essa atividade eram vigorosamente questionados pelos racionalistas e materialistas do "século das luzes". A esse respeito, não é anódino ver o quanto, na Regra Maçônica, parece-se contra-atacar essa visão incrédula com termos relativamente rudes: “Chora o triste delírio daquele que fecha os seus olhos à Luz e caminha nas trevas espessas do acaso, que o teu coração seja tocado e reconhecendo os benefícios paternais do teu Deus, rejeite com desprezo estes sofismas vãos que provam a degradação do espírito humano, quando se afasta da sua fonte” (4) . Estas palavras não são apresentadas ao novo aprendiz, convém estar consciente disso, por mero formalismo. Com efeito o Regime Escocês Retificado, que foi constituído no século XVIII, surgiu no cenário da história maçônica em um período onde reinava uma poderosa corrente de rejeição e negação das verdades ensinadas pela religião, e sua finalidade foi, ao mesmo tempo, reformar a Franco-maçonaria em situação de angustiante interrogatório sobre as suas origens e os seus fins, a fim de lhe conferir um corpo doutrinal de que carecia; e trabalhar para manter, entre os cristãos que o eram cada vez menos, uma compreensão dos grandes princípios da Revelação, princípios que se lhes fazia, pelo espírito da época, ainda mais estranhos e escuros.
Por tal razão poderíamos falar sem dúvida, em se tratando da empresa de Jean-Baptiste Willermoz, de uma autêntica intenção de “conservação”, para as almas em busca da Verdade dos mistérios do cristianismo diante da atmosfera do deísmo, do relativismo e do “livre pensamento” que se estendia por toda parte da Europa, e não é excessivo considerar, desde esse ponto de vista segundo o qual a função iniciática própria do regime retificado foi, e continua a ser, de natureza profundamente espiritual e mesmo “religiosa”, no sentido de manutenir a transmissão da ciência divina primitiva que depende, não de um cristianismo dogmático procedente das decisões conciliares (embora porte os dogmas centrais em comum as diferentes religiões que professam o cristianismo), mas "transcendente", tal como o nomeou Joseph de Maistre (1753-1821), ou seja, penetrado pelos ensinamentos que se desenvolveram, principalmente, na escola Alexandrina, sob a figura tutelar de Orígenes (185-254).
Meus queridos irmãos, aqui encerramos a primeira parte deste artigo. Despedimo-nos deixando as palavras de Orígenes de Alexandria em resposta a Celso - um ferrenho crítico do cristianismo que em sua obra “A Palavra Verdadeira” tenta desmontar o argumento apologético de sua época que, com grande sucesso, se arraigava no coração dos homens… E quantos não são, meus queridos irmãos, os “Celsos” do mundo atual, dentro de nossa amada ordem maçônica e mesmo dentro de nosso amado Regime Retificado ? Ei-las:
“devemos replicar: se alguma vez tivesse lido principalmente os profetas, que estão repletos daquilo que se reconhece como enigmas e palavras obscuras à grande massa, se tivesse examinado as parábolas evangélicas, o restante da Escritura, a lei, a história judaica, as palavras dos apóstolos, e se tivesse querido, por leitura criteriosa, penetrar no sentido das expressões, não tivera a audácia de dizer “pois sei tudo”. Eu mesmo, que lhes consagrei meu tempo, jamais diria “pois sei tudo”, porque sou amante da verdade. Ninguém de nós diria “pois sei tudo” do sistema de Epicuro, nem terá a temeridade de crer que sabe tudo do platonismo, tantas são as inúmeras divergências entre os que explicam o platonismo. Quem, portanto, será tão temerário que ouse dizer “pois sei tudo” do estoicismo, tudo do peripatetismo? A não ser que por acaso conheça este “pois sei tudo” de pessoas do povo inconscientes de sua própria ignorância, e acredite conhecer tudo por ter tido tais mestres! Sua atitude evoca a de homem que tivesse passado um tempo no Egito; neste país os sábios dão, conforme os livros sagrados do país, grande número de interpretações filosóficas de costumes que consideram divinos, ao passo que o povo comum, conhecendo de ouvido alguns mitos cujo alcance doutrinal desconhece, tem por eles grande orgulho; e este homem julga saber toda a doutrina dos egípcios, por se ter tornado discípulo dos profanos de lá, sem haver jamais consultado nenhum dos sacerdotes, nem recebido de algum deles os ensinamentos secretos dos egípcios. E o que digo dos sábios e profanos do Egito, podemos igualmente ver entre os persas: também aí há iniciações interpretadas racionalmente pela elite do país, mas realizadas em suas figuras exteriores pela massa mais superficial. E devemos dizer o mesmo tanto dos sírios, dos hindus, de todos os que têm mitos e livros sagrados”.
Notas:
1 - “[...] mas que o teu espírito embotado não pode compreender, nem definir”; esta afirmação por parte da Regra Maçônica está em total conformidade com a tradição patrística. Santo Agostinho no Sermão 117 afirmou: “Estamos falando de Deus, o que tem de Estranho que não O compreenda? Pois, se O compreende-se, já não seria Deus…” - [Sermão 117, III, 5]. De modo semelhante, posicionou-se São João Damasceno (+749): “De Deus é impossível dizer o que é em si mesmo, e é mais correto falar daquilo que Ele não é. Não porque Ele não seja algo de certa forma, mas porque está acima de tudo o que é, e acima do mesmo ser” - [Da fé ortodoxa, L., I, 4.]
2 - Textos publicados pela primeira vez por René Desaguliers na revista Renaissance traditionnelle n.o 80, Outubro de 1989, pp. 241-281, respectivamente designados sob as signatárias FM 508 (2.o caderno [B]) e FM 509 (3 er Diário [C]), na Biblioteca Nacional de Paris, a partir do qual uma cópia, que contém diferenças na escrita, é encontra nos fundos Georg Kloss da Biblioteca do Grande Oriente dos Países Baixos em Haia. Pertencem ao conjunto dos textos doutrinais de Jean-Baptiste Willermoz, não diretamente maçônicos, portadores de numerosas correções, que assinalam um trabalho em constante elaboração até uma época relativamente tardia de sua vida. Sua datação se situa entre os anos 1806 e 1818. Estes manuscritos fazem parte do conjunto de textos doutrinais de Jean-Baptiste Willermoz que consiste de tratados, cartas, e até mesmo um fragmento de ritual. Paul Vuillaud (1875-1950), em sua obra dedicada a Joseph de Maistre, Joseph de Maistre Franc-Maçon (1926), revelou ainda os «Títulos gerais e particulares dos seis cadernos», designados pelas letras [A] [B] [C] [D] [E] [G]. O segundo caderno [B] e o 3o Caderno [C], cuja datação se situa entre os anos 1806 e 1818, tratam de vários temas, entre eles a Trindade, o simbolismo dos números, a emanação dos seres e ainda da questão, delicada, no plano Teológico, do livre arbítrio.
Jean-Baptiste Willermoz recordava a Jean de Turckheim: «Disse-lhe sempre que sou apenas o inovador e redator da doutrina de Moisés que recebeu a ordem do Senhor para transmiti-la, sem véu nem simbolo, para conservá-la em toda sua pureza..." (Carta, 28 de outubro de 1820). O destacável, e sobretudo altamente instrutivo nestas linhas, é a exposição, muito clara, por Willermoz, do que é realmente a 'tripla' potência tradicionalmente designada como ‘‘Pensamento, Vontade e Ação'' nos rituais do Regime Escocês Retificado, ou seja, na realidade, como escreveu: «sagrado ternário [...] que nós chamamos a Santa Trindade.»
3 - Não nos esqueçamos que o “Tratado de Reintegração dos Seres” de Martinez de Pasqually (+ 1774), que teve uma considerável influência sobre Willermoz, é uma destacável fonte relacionada a nosso tema, posto que se apresenta como um relato geral da Criação, relato esse que ele inicia antes da aparição do homem e do mundo. Neste tratado, Deus é designado constantemente sob a figura do Criador e é corrente no texto que a Ele se referencie dessa forma e, até mesmo, de “Ser-Criador”. “Sim, sou o pai temporal dos filhos espirituais dos filhos de Israel e não de seus filhos carnais e materiais. Foste testemunha da manifestação da glória e da justiça divina a teu favor, pela força das minhas operações. Viste claramente a ação e a vontade do Criador em tudo o que fiz por ti. Viste, pois, em mim a semelhança do pensamento do Eterno, posto que, li em sua glória e o vi face a face. Esta montanha espiritual que me viste montar anunciava-te a distância que há do Ser-Criador à criatura geral ou à terra” (Martinez de Pasqually, Tratado sobre a reintegração dos seres na sua primeira propriedade, virtude e potência espiritual divina, [215] Grande discurso de Moisés.). Por outro lado, o ato de Criação está claramente descrito como o surgimento do ser a partir do nada: “Não é possível olhar as formas corporais presentes como se fossem reais, sem admitir uma matéria inata no Criador divino, coisa que repugna sua espiritualidade. Ele é chamado de Criador, porque do nada ele criou tudo, e toda a sua criação vem de sua imaginação; e é porque a sua criação vem de sua imaginação pensante divina que é chamada de imagem. A mesma faculdade divina que tudo produziu, trará de volta tudo ao seu princípio, e da mesma maneira que toda espécie de forma teve um princípio, da mesma maneira se dissipará e reintegrará em seu primeiro lugar de emanação.” (Ibid., [116] O Criador protege o homem caído e a sua criação não é senão uma imagem). Em outro trecho, Martinez fala do nada em que se encontrava a natureza universal antes da ação do Criador: “As águas que subiram até as portas do firmamento e dissimularam toda a natureza aos vossos olhos, representam o nada onde estava a natureza universal antes que o Criador tivesse concebido, na sua imaginação, operar a criação, tanto espiritual como temporal. Nos faz ver claramente que todo ser temporal provém imediatamente da ordem de seu pensamento e de sua vontade, e que todo ser espiritual divino vem diretamente de sua emanação eterna. A criação não pertence senão à matéria aparente, que, não vindo de nada, se não da imaginação divina, deve entrar no nada; mas a emanação pertence aos seres espirituais que são reais e imperecíveis. [...] Admite somente a ele, como motor criador de tudo o que vossos olhos corporais e espirituais percebem, e estais convencidos de que nada existe, existiu nem existiria sem da sua vontade, senhor. Nunca esqueçais que tudo provém dele…” (Ibid., [138] A instrução de Noé aos habitantes que saíram da Arca: a emanação e a criação). Ou ainda: “Que dureza de alma e de espírito, querer fazer que proceda de um ser puramente espiritual princípios espirituosos que não podem produzir nada mais que formas materiais, que ainda estariam no nada se não tivessem sido retirados dela um ser espiritual divino!” (Ibid., [130] Discurso de Noé: sentido do dilúvio.)
4 - Regra Maçônica Artigo I: “Deveres para com Deus e a Religião”
I.C.J.M.S. Que Nossa Ordem Prospere !!!
Fontes:
- Vivenza, Jean-Marc: "LA CREENCIA EN LA EXISTENCIA DE DIOS EN EL RÉGIMEN ESCOCÉS RECTIFICADO"
- Contra Celso, Orígenes de Alexandria (Coleção Patristica, Vol20)
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