Concluímos então, com essa postagem, aquilo que podemos chamar de “breve explanação sobre a Ontologia e a Metafísica no Regime Retificado”. Fazemos votos para que os maçons dedicados ao rito no Brasil tenham encontrado nessas breves linhas a alegria de perceber elementos suficientes para uma reta e sã meditação sobre os temas metafísicos que nos são apresentados no correr de nossa carreira como maçons retificados e que tantas vezes são encobertos por uma espessa nuvem de superstições e de falsas doutrinas que, em última análise, não apenas obscurecem as palavras e intenções de nossos Pais Fundadores, mas, de forma muito mais grave, desviam irmãos valorosos condenando-os a vagar nas trevas exteriores. Os que semeiam tal confusão, saibam, não ficarão esquecidos: “Mas qualquer que fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e se submergisse na profundeza do mar. Ai do mundo, por causa dos tropeços! pois é inevitável que venham; mas ai do homem por quem o tropeço vier!” - (Mt 18:6,7)
Ainda Sobre o Tempo e a Eternidade
O que foi apresentado nas partes anteriores deste artigo a respeito do que representa a “eternidade” em relação à natureza essencial do Ser primeiro, demonstra bem a profundidade metafísica a qual estamos expostos quando entramos em contato com os termos usados pelo pai fundador do Regime Escocês Retificado, no momento em que se invoca, por meio das orações rituais da Ordem ao “Ser Eterno e Infinito”. Profundidade essa, que alcança amplitude ainda maior quando nos debruçamos sobre os “nove cadernos” doutrinais escritos por Jean-Baptiste Willermoz. Pensando no valor ontológico eminente das linhas que nele se apresentam (ainda que possam caducar quando confrontadas com as de outros teóricos mais especializados no tema), descrevendo-nos a ação criadora que deu “o ser” aos diferentes seres, principalmente aos espirituais, a partir da “imensidão divina”, lugar onde Deus tem Sua morada, região incriada e infinita; como diz Jean-Baptiste Willermoz:
“A imensidão divina, lugar incriado, infinito e sem limites, que cresce sem cessar, e crescerá sem fim para a multidão dos seres emanados (1), destinados a habitá-la, é a estadia da unidade eterna que a enche de seu Esplendor e de sua divina Luz, que é o Centro, a circunferência e o todo. E é desde este Centro incompreensível desde onde Deus vê tudo, tudo conhece, tudo antevê, tudo abarca, tudo dirige e governa por Sua Vontade, por Sua Sabedoria, por Sua Providência; e tudo ordena soberanamente pelo seu Verbo Todo-poderoso” (2).
O Ser eterno e infinito é autossuficiente, só conferiu assim, em sua Onipotência, o ser que tem por essência a outros seres, que por um efeito de Seu amor e de Sua bondade, tendo desejado associá-los à Sua própria beatitude, comprometendo-os, por efeito da sua generosidade sobrenatural, na procissão da “Luz incriada” (3):
“Deus basta-se absolutamente a si mesmo, não necessita ter, como os homens, nenhum testemunho, nenhum contemplador da Perfeição de seu Ser, para desfrutar plenamente de sua beatitude eterna. Só pôde conceber pois o pensamento de emanar de seu seio a seres espirituais puros, por amor por eles [...] Sim, é unicamente por um grande amor por eles que os associou de alguma forma a sua própria beatitude, admitindo-lhes à contemplação de sua Glória, de sua Onipotência e de suas Perfeições infinitas, com o fim de que estejam sem cessar, motivados por esta alegria pura, a glorificar-lhe pela homenagem contínua de seu amor e de seu agradecimento.” (4).
No entanto, saber o tempo que decorreu antes da Criação não faz qualquer sentido, uma vez que sabemos que antes do tempo não havia “nada” do que há, e que neste nada não havia tempo, duração, nem dimensão temporal:
“Guardemo-nos aqui de tentar satisfazer uma vã e pecaminosa curiosidade de buscar penetrar as coisas que agrada a Deus não revelar aos homens, como por exemplo o conhecer ‘por quanto tempo os espíritos feitos rebeldes se mantiveram no bem antes de sua prevaricação?’. Essa questão fútil, fruto único de mera curiosidade, é extremamente repreensível pois o tempo nunca existiu no absoluto e não existirá jamais na imensidão divina”
Acima de tudo, e em primeiro lugar, a nossa indiferença em relação ao tempo é uma atitude fundamental - e nisso reside o verdadeiro segredo metafísico da “ontologia retificada”, ensinando-nos que o tempo é estranho a nossa “verdadeira natureza espiritual” - pois para nos colocarmos em íntima relação com o Ser Eterno e Infinito convém nos estabelecer em sua “presença”, que é precisamente um “presente eterno” alheio ao tempo, experiência descrita por Jean-Baptiste Willermoz, demonstrando-nos que quando o homem é absorvido intelectualmente durante a meditação sobre questões de uma ordem superior, se dá conta, com assombro, que o tempo transcorreu de forma inconsciente e que só com o retorno aos “objetos materiais” percebe que está novamente submetido à sucessão temporal das horas:
“Portanto, que nos baste saber que, nem para Deus, nem para nenhum espírito puro, há tempo, e portanto nenhuma medida de tempo; que para Deus o passado e o futuro são iguais e que todas as coisas estão presentes diante Dele sem cessar. O tempo e a lei do tempo não começaram senão depois da prevaricação dos primeiros espíritos, e se hoje o mesmo homem está submetido a isso, isso ocorre tão somente pelas sucessões de sua própria prevaricação; ainda poderia reconhecer facilmente, se quiser observar-se atentamente, que o tempo é estranho à sua verdadeira natureza espiritual; porque se seu espírito esteve fortemente, sem distração e durante muito tempo, ocupado na meditação sobre objetos intelectuais que excitaram sua inteligência, vê com assombro, ao sair deste estado como de um profundo sono, que várias horas do tempo transcorreram sem que saiba, e só comparando o momento presente com aquele em que começou sua profunda meditação é como pode calcular a duração do intervalo que lhes separou” (5).
A essa altura já não contestamos que Deus é o Ser eterno e infinito e que Ele está presente em nós. Isso dado ao fato de que a criação não se reduz aos começos; uma vez realizada a criação, Deus não abandonou sua criatura a ela mesma. Ele não somente lhe deu o ser e a existência, mas também a sustenta a todo instante no ser, dando-lhe o dom de agir e a conduz a seu termo (6). As escrituras sagradas comparam esta atuação de Deus na história com a ação criadora (cf. Is 44,24; 45,8;51,13), nosso Deus não é um Deus ausente. Em Sab 11:25 vemos: “E como algo teria subsistido se não o tivésseis querido? Como teria se conservado aquilo que não tivésseis chamado?”. São Paulo vai além, atribuindo esta ação conservadora a Cristo: “Ele existe antes de tudo, e tudo tem nele sua consistência” (Col 1,17).
A ideia de um Deus que cria sua criatura e a abandona a própria sorte é impensável para um rito teísta como o Regime Retificado; o contrário é típico de uma concepção deísta, segundo a qual Deus não se imiscui nos assuntos deste mundo. Mas isto supõe uma distorção do autêntico Deus criador, pois separa drasticamente a criação da conservação e governo divino do mundo. Se assim o fosse, a presença de Deus na sua criatura seria irreal; o que invalidaria o que disse o apóstolo: “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós ?” (1 Cor. 3:16) ou a Regra Maçônica que diz: “Deus, podendo auto satisfazer-se, dignou-se a comunicar com os homens.”. Ora, isso nos é claro.
A noção da presença conservadora de Deus em sua criatura provê a “ponte” entre a ação criadora e o governo divino do mundo (providência). Deus não apenas cria o mundo (ex nihilo) e o mantém na existência, mas também conduz suas criaturas à última perfeição, à qual ele mesmo as chamou (oferece-lhes a possibilidade da retificação). As Sagradas Escrituras nos apresentam a soberania absoluta de Deus, que desde (a partir de) a eternidade nos cobre com seu cuidado paterno, tanto nas coisas pequenas como nos grandes acontecimentos da história. Neste contexto, Jesus se revela como a “providência encarnada” de Deus, o Bom Pastor, que atende as necessidades materiais e espirituais dos homens (Jo 10,11.14-15; Mt 14, 13-14, etc.) e nos ensina a abandonar-nos aos seus cuidados (Mt 6,31-33). “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em Vós” - (Rom 11:8).
Enfim, a criação segue, in statu viae, em direção a uma meta última por alcançar.
O Maçom Retificado Ante do Deus Eterno e Infinito
Ora, todo esse conhecimento que o Rito Retificado nos oferece (diretamente por meio da experimentação do drama ritualístico, da Regra Maçônica ou mesmo pelos escritos de nosso Pai Fundador) a respeito da Eternidade, Infinitude ou da imensidão do Ser Eterno - presente em nós pois tudo penetra, tudo anima e a tudo dá a vida (7) - seria reduzido a uma mera especulação filosófica caso não somássemos a ele: a adesão plena aos dogmas centrais da cristandade, a observação da Regra Maçônica como regra de vida, o esforço devocional - por meio da oração - para que Deus nos infunda as Virtudes Teologais necessárias a nossa retificação e a prática de uma caridade constante e esclarecida. E a lição se nos apresenta já no início de nossa caminhada…
“Nesta aparente solidão não creias estar só!
Absolutamente separado dos outros homens, mergulha em ti mesmo e vê se existe um Ser que esteja mais perto de ti que Aquele de que tens a existência e a vida.
Sim. Ele está ao pé de ti. Mas tu estás muito afastado Dele. Tenta pois aproximar-te pelos teus desejos e pela tua submissão às Suas leis. Para alcançar este final feliz, tu deverás fazer um trabalho penoso, demandar, perseverar e sofrer.” - Extrato do Ritual do Aprendiz Maçom.
“Grande Arquiteto do Universo, ser eterno e infinito, que és a bondade, a justiça e a própria verdade; tu que pela tua palavra poderosa e invencível deste o ser a tudo o que existe, aceita a homenagem que os irmãos aqui reunidos na tua presença te oferecem em seu nome e no de todos os outros homens.
Abençoa e conduz tu próprio os trabalhos da ordem, e os nossos em particular.
Digna-te coroar o nosso fervor com um feliz sucesso, a fim de que o templo que empreendemos erguer para tua glória, sendo fundado sobre a sabedoria, ornamentado pela beleza e sustentado pela força, em ti originados, seja um lugar de paz e união fraternal, um refúgio para a virtude, uma muralha impenetrável ao vício, e o santuário da verdade; em suma, para que possamos todos ai encontrar a verdadeira felicidade, de que tu és o único princípio e eterno fim” - Oração de Abertura no Ritual de Aprendiz Maçom.
Assim, os extratos do Ritual destacados falam por si só. O primeiro (que se dá na Câmara de Reflexão) nos aponta essa ação conservadora de Deus (“Nesta aparente solidão não creias estar só!”) que está presente em nós, não obstante o quanto nossa ignorância (nossas trevas ou as trevas nas quais estamos envoltos) não nos permita percebê-la… E prossegue chamando-nos a submissão às Leis de Deus, via única para alcançá-lo. Já o segundo ("Oração de Abertura do Grau de Aprendiz Maçom") reconhece a Infinitude e a Eternidade desse mesmo Deus, enquanto clama para que Ele aceite a homenagem (o culto) que lhes prestamos - tal qual aceitou o sacrifício de Abel - e conduza Ele mesmo os trabalhos da Ordem e os nossos trabalhos em particular; reconhecendo ainda que, sem Seu Espírito Vivificante e Santificante, o templo que desejamos construir, para Sua Glória, está fadado a fracassar pois um dos nossos trabalhos é o do autoconhecimento e “aquele que tem conhecimento pleno de si mesmo sabe perfeitamente que dele não pode sair nada de bom, a não ser que Deus o permita”.
Notas:
1 - O assunto “emanação” será tratado em artigo futuro.
2 - J.B. Willermoz, “Doutrina, Instrução Particular e Secreta a Meu Filho”, 1818, composta de nove cadernos, «Divina Doutrina de Moisés», op. Cit.
3 - Tal conceito é mais comum à teologia ortodoxa do que propriamente teologia latina. O Santo Hierarca Gregório de Palamàs. Este santo ortodoxo é o teólogo mestre da oração incessante e da Luz incriada. Nos diz São Gregório de Palamàs: “A luz da glória do Reino dos Céus não é criada como a luz solar, mas é luz incriada, eterna. E esta é a glória do Reino dos Céus, que contemplaram os santos apóstolos Pedro, Tiago e João na Transfiguração de Jesus Cristo sobre o Monte Tabor. Deus concedeu a algumas pessoas dignas, cujas vidas neste mundo lhe foram agradáveis, a graça da antecipação da visão da glória de seu Reino. Quando somos assíduos na oração, no arrependimento e no jejum, a graça de Deus nos ilumina, a luz incriada que não conhece as trevas, que não pode ser vista com estes olhos corporais, mas com os olhos da fé, mesmo já nesta vida pode nos ser concedida como antecipação. E esta luz é a luz da glória e a alegria do Reino dos Céus depois da ressurreição de todos aqueles que que crêem e amam a Cristo”.
4 - J.B. Willermoz, “Doutrina, Instrução Particular e Secreta a Meu Filho”, 1818, composta de nove cadernos, «Divina Doutrina de Moisés», op. Cit.
5 - ibdi.
6 - Catecismo, 301.
7 - “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.” (Jo 14:6)
8 - Pe. Antonio Royo Marín em um de seus manuais sobre devoção.
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
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