Documento interno da Loja “La Triple Unión”, no Oriente de Marselha (BnF com assinatura FM2 292), numeração interna da loja 1803-1813, intitulado “Artigo Secreto Anexo a Minha Carta de Primeiro de Setembro de 1087”.
“Observando as solicitações dos irmãos mais avançados nos graus que desejam viajar a Marselha, me parece evidente que em meio aos motivos que alegam, existe (para alguns) um em particular, não confessado em alta voz, mas que verossimilmente é o principal.
Desde a confissão feita alguns anos atrás sobre a existência no Regime Retificado de uma Classe Secreta e definitiva (última), confissão da qual me censurei dado os perigos que a acompanhavam, mas que era necessária a fim de reorientar aqueles que haviam se extraviado, para apoiar aqueles que cambaleavam e para despertá-los de seu adormecimento entre uma multidão caída em letargia mortal; cada um dos aspirantes fez seus cálculos particulares, consequentemente errados; posto que cada um acreditou-se apto para tal coisa, crendo-se capaz de participar dela sem conhecer sequer as regras, os deveres e as condições exigidas para tal.
A maioria dos que resolveram permanecer em suas casas, seja por assuntos de natureza pessoal ou por medo de sucumbir ante os gastos da viagem (que exige ainda uma estadia mais ou menos longa em Lyon), naturalmente gostariam que fosse levado até eles aquilo que não podem ou não querem vir buscar aqui. Mas, ainda que eu estivesse em Marselha, muitos deles se desenganariam [sic “se desapontariam ? ”] pois há regras muito severas que se devem respeitar nesse assunto; seria necessário que minha estada ali fosse demasiado prolongada para que pudesse estudar uma à uma as disposições e aptidões pessoais de cada um em particular, o que é demorado e difícil pois se tratam de pessoas que eu, em absoluto, não conheço.
Provavelmente teríamos, para sorte de alguns, muitos descontentes que, por sua vez, me tomariam como parcial e me julgariam de maneira severa. Ademais, segundo os mesmos princípios da Ordem, a entrada nesta Classe não pode estar aberta para todos os Cavaleiros pois os graus de inteligência e de aptidão para com essas coisas não são os mesmos em todos os que, em algum aspecto, podem parecer dignos dela.
E é para dar outra direção à ideias pouco sãs e de pouca profundidade (fruto de pouca reflexão) de alguns que vou aprofundar, por meio desta, esse assunto. Muito mais do que tenho feito até agora e apresentá-lo sob suas diferentes faces.
A sétima e última classe que completa o Regime Retificado, que deve permanecer ignorada das outras seis precedentes até que se chame individualmente a cada um daqueles que são julgados aptos a ascender a ela, é uma iniciação particular que consiste em diversas instruções pelas quais se desenvolvem os princípios e as bases fundamentais da Ordem e explicam os emblemas, símbolos e cerimônias da Maçonaria Simbólica. Mas tal iniciação, por mais luminosa que seja, segue imperfeita, insuficiente e inclusive pode levar a muitos erros por causa das falsas interpretações, as quais frequentemente nos entregamos, caso não sejam acompanhadas de outras instruções explicativas que, não sendo escritas, só nos podem ser dadas verbalmente por aqueles que, por longos trabalhos e meditações, conquistaram o estado de poder distribuí-las a cada um de forma conveniente, segundo suas necessidades, aptidões e segundo a justa medida que lhes é necessária. Tais explicações foram transmitidas desde tempos imemoriais por meio de uma tradição oral que atravessou os séculos e que se sustentava nos bons testemunhos. Eis a razão pela qual devemos deixar que desconheçam esta Classe e eis a razão pela qual devemos fechar a entrada para aqueles em quem não se vislumbra a aptidão necessária para aproveitá-la bem; ou ainda, para aqueles que não podem, em função de seus assuntos pessoais ou por preocupações temporais, dar-se a liberdade de espírito que ela exige ou dispor do tempo que é necessário empregar para conhecê-la em plenitude (deve-se ter em mente que não é um tempo curto).
Também se deve saber que entre aqueles que a recebem da forma suficiente para sua instrução pessoal, há muito poucos que conseguem o estado de poder ensiná-la aos demais da como se deve, posto que isso é o efeito de uma especie de disposição, de uma vocação particular; eis o motivo pelo qual o depósito dessas instruções raramente é transmitido em locais onde não se encontram homens fortes para explicá-los e fazê-los valer. Além disso, esta iniciação pode não ser conveniente a todos os Cavaleiros, ainda que todos tenham direitos iguais (já que as disposições pessoais são iguais). Ela é inútil, muito inútil a um grande numero deles, chegando mesmo a conservar perigo para alguns. Por outro lado, é útil para muitos e para outros; é extremamente necessária. Volto às quatro distinções para que seja possível entender bem:
1. Tal iniciação é inútil para a maioria dos homens bons, simples, privilegiados, cuja ciência habita o coração, que tem a sorte de crer religiosamente e sem necessidade de exame em tudo que é preciso crer para que sejam felizes no presente e no futuro, creem com essa fé implícita que vulgarmente é denominada de “fé do carvoeiro” (1); para esses a profissão de fé dos Cavaleiros é absolutamente suficiente. Não seria de nenhum proveito para eles conhecerem novos objetos que apenas cansariam ou exaltariam sua imaginação e perturbariam seu atual estado de alegria, soma-se a isso o fato que a inteligência deles não é nem muito ativa e nem muito penetrante.
2. Pode conter, ainda, certo perigo para aqueles que, seja por causa de sua educação religiosa ou por sua disposição natural, tomaram como um dever o "sufocar sua própria razão" para adotar cegamente todas as pretensões, opiniões e decisões ultramontanas e, consequentemente, o espírito de intolerância que sempre as acompanha, prejudicando a religião que tanto sofreu e segue sofrendo por causa das fatais linhas de ação sugeridas pelo espírito do orgulho, da ambição, da dominação e dos mais sórdidos interesses daqueles que querem que seja prestado a suas decisões humanas, muitas vezes ambiciosas, variáveis e de caráter momentâneo o mesmo grau de fé absoluta que é devido, essencialmente, aos dogmas fundamentais da religião, estabelecidos por Jesus Cristo e seus Apóstolos, constantemente professados, sustentados e confirmados pela pela Igreja Universal em seus Concílios Gerais (2). Também pode guardar certo perigo para aqueles que tomam textualmente ao pé da letra todas as palavras e expressões empregada no Gênesis e em outros Livros Santos, que não buscam penetrar o Espírito velado sob a letra, estando sempre dispostos a escandalizarem-se com toda e qualquer explicação ou interpretação que não coadune perfeitamente com o sentido particular que eles creem correto. Isso seria expô-los, sem frutos, a um trabalho que seria doloroso para eles, ainda mais que essas ideias quando assentadas na inteligência humana raramente a deixam… Temo que nessa Classe tenhamos mais de um desses entre os Irmãos Cavaleiros.
3. Mas a iniciação é útil para um grande número daqueles que, de forma vacilante, acreditam nas verdades fundamentais da religião cristã mas sentem uma necessidade interior inquietante de crer de maneira mais forte ainda, porém pela falta de conhecer a verdadeira natureza do homem , seu destino primitivo no universo criado, sua prevaricação, sua queda, sua degradação, bem como os terríveis efeitos que ela produziu na Natureza, não encontram neles mesmos nem fora deles, pontos de apoio suficientemente sólidos para criar bases para sua crença, desejam crer mais do que realmente creem, enquanto veem escutar [sic “fluir?”] sua vida no transtorno das angústias de uma dolorosa incerteza. Para estes, é preciso ter em mente, tal iniciação é um grande auxílio já que lhes devolve a calma e a fé que desejam.
4. Finalmente, a iniciação não é apenas útil mas extremamente necessária aos homens de boa fé, muito mais numerosa do que se pensa, que creem firmemente na existência de um Deus criador de todas as coisas, bom , justo, que castiga e recompensa, mas que, pela falta de conhecer suficientemente os pontos da doutrina primitiva, já citados em artigo anterior, custa-lhes reconhecer a divindade de Jesus Cristo e, ainda mais, a necessidade da redenção dos homens através da encarnação de um Deus (fazendo-se homem). Tais homens meditativos para quem as demonstrações teológicas mais utilizadas e regularmente apresentadas como provas difíceis de rechaçar (ainda que muito combatidas), não são suficientes; Aqueles que não são convencidos por nada... É para eles que a iniciação é extremamente necessária, é para eles que deve ser especialmente destinada. Não duvido, dado que muitas vezes testemunhei seus resultados felizes, que estes homens de boa fé, uma vez convencidos e voltados a si mesmos por força das consequências imediatas dos pontos da doutrina que lhes foi apresentada, rompem-se em choro, traduzindo sua mudança interior por meio de lágrimas de amor e agradecimento para com Aquele que, por estarem em desgraça (fora da Graça), haviam desconhecido; convertem dai em diante em inquebrantáveis colunas da Fé Cristã. É por isso que a Ordem exige para os mais altos graus uma crença absoluta na Unidade de Deus, na imortalidade da alma humana e a exige “menos absoluta” para a pessoa divina de Jesus Cristo, e vemos que mesmo na profissão de fé dos Cavaleiros, como em outros atos relativos, se mostra mais indulgente a este respeito e praticamente se conforma com uma boa e firme vontade de crer nas verdades que são necessárias. É porque ela sabe que tem os meios particulares de trazer essa crença e convencer os homens de boa fé. Eis aqui também a razão pela qual se exige de todos os membros uma tolerância universal que se faz um principio e um dever absoluto para todos; já nisso se imita o exemplo daquele que disse: “não vim a este mundo para que as pessoas se portem bem, vim para aliviar e curar os que estão enfermos”. Como Jesus Cristo em meio a multidão de enfermos não rechaçou os ignorantes, nem os sábios, nem os fariseus, nem os mercadores mas acolheu a todos com a mesma bondade, acaso se assombrara alguém que a Ordem, a Sua semelhança, acolha em seu interior com a mesma caridade a todos os cristãos bem intencionados, ainda que divididos por suas opiniões acabem formando diferentes seitas [sic “confissões?”] pelo fado de dar mais ou menos importância aos pontos da doutrina ? Depois de conduzi-los por meio da instrução à crença religiosa fundamental e necessária, a Ordem deixa para a Graça Divina o cuidado de operar neles as mudanças interiores ou exteriores que creia necessárias conforme Sua providência. A ordem se proíbe de julgar e mais ainda de condenar [...] deixando o julgamento para o único que conhece em verdade os pensamentos e as intenções dos homens.
Veja, meu querido irmão, que a iniciação está especialmente reservada aos irmãos doentes, isto é, para aqueles que sentem vivamente os sofrimentos e a causa de sua enfermidade e desejam sinceramente a cura. É inútil para os outros e, na maior parte das vezes, poderia tornar-se um alimento para o orgulho, para a vaidade e para a curiosidade humana. Veja então, o quanto é delicada essa eleição e o quanto ela exige (quando não se conhece os candidatos) de tempo e de precaução para bem fazê-la." I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
Notas:
1. “Fé do carvoeiro, convicção e crença firme e cega, que não dá ouvidos a razão ou argumentos.” (Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Delta, 1958. v. 3, p. 2173). A expressão é antiga, tendo mesmo desaparecido de obras mais recentes. No imediato pós-guerra, o carvoeiro, como o entregador de leite, de pães, de lenha etc. era mais um trabalhador braçal a serviço dos lares. O carvão para aquecimento dos lares seria substituído por aquecimento elétrico ou decorrente de outra fonte de energia, explicando-se o ocaso da expressão um tanto depreciativa “fé do carvoeiro”.
2. Um Concílio Geral consiste numa reunião formal de representantes da Igreja, junto com o Papa (mas nem sempre), para tomar decisões dogmáticas e pastorais, que possam ajudar no crescimento da Igreja, na eliminação dos erros e na difusão das verdades da fé.
O destinatário da carta era Claude François Achard, Eques a Galea Aurea.
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