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A Luz Resplandece Nas Trevas e As Trevas Não a Compreenderam

  • Foto do escritor: Primeiro Discípulo
    Primeiro Discípulo
  • 24 de abr. de 2021
  • 38 min de leitura

Atualizado: 17 de jun. de 2021

Em “L’evangile Spirituel de Saint Jean, Suivi de le Regne de Dieu et le Monde”, Ernest-Bernard Allo, O.P, brilhantemente pontua: “O Evangelho Segundo São João é o cume, o coração, o centro, o ‘Sancta Sanctorun’ do Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, da Revelação Cristã e, pode-se dizer, de qualquer forma de religião possível… Os antigos o chamavam de ‘o Evangelho do Teólogo', ‘o Evangelho do Espírito', que só é possível de ser compreendido por aquele que é ele mesmo, também, ‘espiritual’”.


A definição acima é extremamente feliz ao expor a magnitude do escrito joaneu e o quanto ele nos fala diretamente ao espírito; o Evangelho de São João é tão rico em estilo, vocabulário, mentalidade e propósitos, que se põe à parte da tradição sinótica, tendo valor e encantos próprios e - porque não dizer - únicos. É atribuído a São João Apóstolo (1) e compõe, juntamente com o Apocalipse e com o epistolário do apóstolo, uma espécie de trilogia (2) correspondente às virtudes teologais: FÉ (Evangelho de São João), ESPERANÇA (Apocalipse) e CARIDADE (1. 2. 3 Jo). Seu fim é teológico, como afirma o próprio autor (20:21), e convida os leitores a crer que “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus” e que, a partir dessa crença, “tenham vida em seu nome”. Já o Apocalipse excita nos fiéis a esperança sobrenatural em meio as tribulações da vida presente, ao passo que o epistolário joaneu traça um programa de vida baseado na consciência de que Deus é Amor subsistente, motivo pelo qual deve o cristão, filho adotivo de Deus, irradiar incessantemente a caridade do Pai.


Se fosse possível (e de certa forma é) resumir a mensagem dos escritos joaneus em uma só palavra, essa palavra seria: TRIUNFO. Sim, a ideia central que domina, do início ao fim, os textos do apóstolo é o triunfo da LUZ (verdade e bem) sobre as TREVAS (erro e mal). O Evangelho mostra esse triunfo obtido - de forma inicial - pela obra de Nosso Senhor Jesus Cristo, dado sua encarnação e passagem pela terra; o Apocalipse mostra-nos como essa vitória inicial vai se desenvolvendo - de forma misteriosa - no gênero humano a medida em que esse avança através dos séculos; por fim, o epistolário indica como o homem deve transformar-se - de forma particular - para tomar parte neste triunfo.


Para tornar mais claro, o seguinte esquema pode ser proposto:


  • Evangelho de São João => Caridade => Triunfo => Obtido pela cabeça;

  • Apocalipse => Esperança => Triunfo => Lentamente desdobrada pelo corpo;

  • Epístolas => Caridade => Triunfo => Aplicada a cada membro desse Corpo em particular (3).

No presente artigo nos dedicaremos aqui a estudar a questão básica do Evangelho de São João: seu autor e suas relações com os Evangelhos Sinóticos; procuraremos também sondar um pouco da mensagem do sagrado autor.


MAS AFINAL, QUEM EXATAMENTE FOI SÃO JOÃO EVANGELISTA?


Refletir acerca do Evangelho de São João exige, antes de qualquer outra coisa, que tomemos conhecimento exato do homem à quem se atribui a autoria de tal livro: São João, o Apóstolo de Cristo.


João (em hebraico Jehorannan = Javé é benigno) era filho de Zebedeu e de Salomé (cf. Mc. 15:40 e Mt. 27:56; 20:20; Jo. 19:25) e irmão de Tiago Maior. Oriundo de Bethsaída, cidade de Simão, Filipe e André (cf. Mc. 1:16-20 e Jo. 1:44) era pescador por profissão, além de dedicar-se ao conserto de redes destinadas a tal função. Acredita-se que era de família abastada (senão, bem equilibrada financeiramente), pois podia pagar empregados para ajudá-los (cf. Mc. 1:20) e que Salomé, sua mãe, era uma das piedosas mulheres que seguiam a Nosso Senhor Jesus Cristo, servindo-O com seus recursos (cf. Mt. 27:55; Lc. 8:2). Foi, juntamente com seu irmão Tiago, discípulo de João Batista (cf. Jo. 1:35-40) mas, juntamente com o irmão, deixou de segui-lo para tornar-se discípulo de Nosso Senhor (cf. Mt. 4:21). Dado ao forte gênio que possuíam (cf. Mc. 9:38; 10:35; Lc. 9:54) os irmãos receberam de Nosso Senhor a alcunha de “Boanerges”, que significa: Filhos do trovão (cf. Mc. 3:17). João era o discípulo amado por excelência (cf. Jo. 21:7) e, juntamente com Pedro e Tiago, teve o privilégio de assistir a ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc. 5:37), a transfiguração no Tabor (cf. Mc. 9:2) e a agonia de Jesus no horto das Oliveiras (cf. Mc. 14:33). Sua relação com o Senhor Jesus não era de subserviência e tampouco escondia qualquer desejo secreto de recebimento de privilégios ou poder no Reino vindouro - não assim os demais apóstolos (cf. Mc. 9:33-34) - portava-se antes como uma criança, demonstrando tal amor filial para com Nosso Senhor que durante a última ceia foi-lhe dado reclinar a cabeça sobre o peito de Jesus (cf. Jo. 13:23). Permaneceu com o Mestre até o fim, tendo sido o único a acompanhá-lO até o último momento de Sua Paixão e, firme ao pé da Cruz, recebeu a nobre missão de zelar por Maria Santíssima e de recebê-la como Mãe (cf. Jo. 19:26-27).


Após a Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo aos céus, João desempenha - em associação com Pedro - as funções apostólicas em Jerusalém e na Samaria (cf. At. 3:1-4; 8:14). Considerado como “coluna da igreja”, esteve presente no ano de 49 na reunião dos Apóstolos (cf. Gál. 2:9). Uma antiga tradição acrescenta a estes relatos que João se transferiu para a Ásia Menor, fixando-se em Éfeso, de onde governaria as comunidades cristãs daquela província (mas isso não pode ter ocorrido antes de 66, ano da segunda epístola de Paulo a Timóteo, bispo de Éfeso). Passou um tempo depois em exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse (cf. Apc. 1:19). E já em idade avançada, morreu de morte natural por volta do ano de 104 d.C. (5).


Na antiga literatura cristã encontra-se ainda uma ou outra notícia concernente a São João. Terá sido, por exemplo, o mais jovem dos Apóstolos e mantido sua virgindade até o fim de sua vida (6). Tertuliano narra que em Roma São João foi mergulhado em uma caldeira de óleo fervente e dela emergiu sem ter sofrido dano algum (7). Atribui-se-lhe ainda a ressurreição de um morto. São Jerônimo relata que nas assembleias São João, já muito idoso, repetia constantemente: "Filhinhos, amai-vos uns aos outros". Ao ser arguido sobre o motivo de repetir a frase com tanta constância, respondeu: "Tal é o preceito do Senhor; bem observado, basta" (9). Os apócrifos "Atos de João" completam esta série de notícias referindo que o Apóstolo nos últimos tempos de sua vida se recreava brincando com uma perdiz domesticada e havendo bebido um cálice de vinho envenenado, não terá sofrido dano algum (10).


Há no entanto um rumor, propagado nos tempos de outrora, sobre a sorte póstuma do Apóstolo que nos chama muita atenção: sentindo que se aproximava o fim de sua vida terrestre, São João mandou cavar sua sepultura, onde finalmente se deitou como se fora um leito, depois ter se despedido dos irmãos; quando estes voltaram, encontraram o Apóstolo morto; contudo, já que não o haviam visto falecer, alguns começaram a propalar que não morrera, mas apenas adormecera no sepulcro! S. Agostinho chega a se referir a uma versão mais popular desse episódio segundo a qual a terra se movia no lugar do sepulcro, denotando o ritmo de respiração do Apóstolo ainda vivo (11).


Estas narrativas da antiga literatura cristã não possuem nenhum valor do ponto de vista historiográfico; todavia merecem atenção por afirmarem de modo gracioso a ligação que os antigos estabeleciam entre virgindade e vitória sobre a morte (a virgindade é algo de angélico; por isto não pode ficar sujeita à corrupção da morte, diziam os antigos, inspirando-se em Mt. 22:30).

O EVANGELHO DO TEÓLOGO


Qualquer um que se dedique à leitura do Evangelho de São João percebe que foi redigido para revelar aspectos da personalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo que não foram, de todo, explanados nos Evangelhos sinóticos. Basta dizer que João guarda em comum com Mateus, Marcos e Lucas somente sete seções e a história da Paixão; notando que mesmo nesses episódios o quarto Evangelho possui certa independência em relação aos demais, dando-se a algumas omissões e a alguns acréscimos, de forma a deixar naqueles que leem esse Evangelho a impressão de um Jesus Cristo caracteristicamente “Joaneu”; ou seja, uma perspectiva sobre a vida de Cristo que cobre de forma muito mais ampla os aspectos teológicos e filosóficos do que os aspectos historiográficos. Essa abordagem suscitou - em não poucos exegetas - questionamentos que, quando apresentados, constituíram a famosa “questão joanéia" (12), cujo tempo não nos permite que tratar aqui neste artigo (13). Prossigamos com nossa análise dividindo-a em tópicos.


TÓPICO UM - CIRCUNSTÂNCIAS


Os exegetas em geral fazem coro à sentença proferida por S. Irineu no séc. II, segundo a qual São João escreveu seu Evangelho em Éfeso (Ásia Menor). Seu publico alvo não eram os leitores judeus, pois para estes não explicaria os termos hebraicos e aramaicos por ele empregados (14), nem a topografia da Palestina (15) e nem os costumes e ritos israelitas a que alude durante sua narrativa (15-A); seu alvo eram, sem nenhuma dúvida, leitores cristãos recém convertidos do paganismo, foi para eles que São João quis redigir em grego os ensinamentos que, havia muitos anos, lhes vinha transmitindo de forma oral; um antigo testemunho (16) diz que foi um grupo de fiéis e de bispos da Ásia Menor que o estimularam a realizar tal empreitada.


A redação deu-se certamente durante o último decênio do séc. I. Logo, o Evangelho de São João é posterior aos sinóticos, posterior também a morte de Pedro (cerca de 67 d.C. e parece supo-la em 21:18); posterior também ao ano 70 ocasião da destruição de Jerusalém, pois, quando se refere a Cidade Santa ou às cidades vizinhas, o autor sagrado emprega as forma verbais no pretérito (cf. 11:18; 18:1; 19:41); além de tudo, não há elementos para crer que São João tenha se transferido para Ásia Menor antes de 70 d.C. (em 66 d.C. Timóteo era ainda bispo de Éfeso). Julga-se que o quarto Evangelho tenha sido na verdade escrito após o Apocalipse, ou seja, somente após a volta do Apóstolo da ilha de Patmos, o que não deve ter acontecido antes da morte de Domiciano (96 d.C.).


Os cálculos acima são confirmados pelo famoso papiro grego 457 da John Rylands Library (Manchester) , que apresenta os fragmentos de Jo. 18:31b-33a e 37b-38a e foi escrito no Egito por volta do ano 130. O documento mede 8,9 x 6 cm; consta de sete linhas que se compõem de treze letras no máximo (na parte superior) e duas ou três letras na parte inferior do fragmento (17). Caso se leve em conta o tempo necessário para que o texto do quarto Evangelho passasse da Ásia Menor para o Egito e nesta região fosse difundido, percebe-se que é adequada a indicação de fins do séc. I como época da redação do Evangelho de São João.


TÓPICO DOIS - A MENSAGEM EM SEUS GRANDES ASPECTOS (A PALAVRA SE FEZ CARNE…)


1 - A Tese e a Estrutura do Evangelho de São João:


“Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro.

Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” - Jo. 20:30-31.


A passagem acima constitui a chave que nos permite entender o quarto Evangelho. O autor diz tê-lo escrito com a finalidade de gerar ou, melhor ainda, fortalecer em seus leitores a fé na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, mediante tal fé, permitir-lhes o alcance da vida eterna. Empregando o vocabulário típico de São João diríamos: A LUZ (FÉ) E A VIDA QUE PROCEDEM DE JESUS CRISTO, eis o que desejou o Apóstolo comunicar aos homens por meio de seu Evangelho. Para cumprir essa missão, São João lança mão do grande número de fatos sobre a vida de Nosso Senhor e também de Suas palavras e escolhe, dentre eles, aqueles que julgou ter mais relevância… Procurou também não repetir-se demais diante daquilo que os três sinóticos já haviam trazido… Assim, já não visava redigir a história completa do ministério do Senhor Jesus, interessando-se muito mais em propor um sentido teológico e profundo acerca da vida humana do Senhor Jesus.


Mas quais foram os critérios utilizados pelo Evangelista para escolher o que relataria em seus escritos?


Logo no limiar do Evangelho de São João, vemos um conceito que estava muito em voga na sua época e que ele fez por bem utilizar: o conceito de LOGOS (cf. 1:1). No mundo helenista, o LOGOS (18) significava um Ser superior intermediário entre o divino e o humano; era a expressão ou a palavra subsistente da divindade. São João diz, já no começo de seus escritos, que o autêntico LOGOS manifesto aos homens pelo Deus vivo e verdadeiro é Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele mesmo; neste se cumprem todas as aspirações do mundo grego e da cultura antiga. E, para mostrar que Cristo traz a plenitude para os desejos da alma humana, São João quis mostrar como o Senhor Jesus tornou-se para todos fonte de LUZ e VIDA (cf. 1:4), conceitos que eram muito usuais na filosofia antiga e constituíam um verdadeiro ideal para os contemporâneos do Apóstolo.


A tese: o LOGOS, fonte de LUZ E VIDA; São João não a quis explanar com argumentos especulativos ou somente no campo da abstração. Não, sua mente trabalhava muito confortavelmente com a linguagem figurada, simbolista (tenha-se em mente o livro do Apocalipse). Por tal motivo, os dois grandes dons do Salvador, o Evangelista os quis simbolizar por dois elementos sensíveis que se fizeram presentes em algumas cenas da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo: a ÁGUA e o SANGUE. São João os torna: água, símbolo da Luz, ou seja, da fé e da pureza moral que Senhor Jesus trouxe ao mundo (19); quanto ao sangue, que o Apóstolo relaciona com o vinho (a qual acarreta a figura correlativa do pão), ele se tornou, no quarto Evangelho, sinal da Vida, do amor e do sacrifício que conduz à imortalidade (20).


Tendo-se em vista a intenção teológica do hagiógrafo, entende-se um traço muito interessante do fim do Evangelho: o autor insiste em referir (citando seu testemunho pessoal e duas profecias) que do lado direito do corpo de Nosso Senhor na cruz jorraram água e sangue (cf. 19:33-37). Para São João, o fato tinha importância capital: era a repetição e o complemento da tese que ele enunciou no prólogo (Jo. 1:4), de que o Logos é fonte de Luz (água) e Vida (sangue) para os homens; O Evangelista, dava a entender que Luz e a Vida do Logos de Deus passam a nós, primeiramente pela santíssima humanidade do Logos encarnado e, a seguir, pela água do Batismo e o sangue da Eucaristia (ou, de forma mais ampla, pelos sacramentos).


Do prólogo (cap. 1) a afirmação final (cap. 19), São João dispõe oito cenas da vida de Nosso Senhor em que entram esses dois elementos: água (Luz) e vinho ou sangue (Vida). Isso situa Jesus Cristo exatamente conforme a tese do autor sagrado, como dispensador dos dois grandes dons da Luz e da Vida.




Já que a fé e a verdade se consumam no amor e na vida eterna, pode-se dizer que o ponto culminante de todo o quarto Evangelho é a solene declaração de Cristo em 11:25: "Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá.”. Nesse versículo expressa-se, de forma cristalina, o nexo dos dons de Jesus (Luz e Vida), sendo o segundo complemento do primeiro: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não anda em trevas, mas terá a luz da vida” Jo. 8:12.


Em torno do esquema proposto, note-se ainda o seguinte: é no cap. 2 do Evangelho que começam as manifestações messiânicas de Cristo (cf. 2:11), e com as bodas de Caná; o cap. 12 constitui a transição para a história da Paixão e exaltação de Nosso Senhor Jesus Cristo (cc. 13-21). Oito, portanto, são os feitos principais da vida pública (cc. 2-12 ) com os quais São João se propõe ilustrar a missão de Jesus. E justamente o número oitavo é o número da perfeição, conforme a mística antiga! Há certamente uma profunda teologia nas páginas de história aparentemente simples do quarto Evangelho (22).


2 - O Quarto Evangelho e o Velho Testamento


O quarto Evangelho possui ainda várias alusões ao Antigo Testamento; alusões essas que, vale pontuar, acentuam ainda mais sua riqueza doutrinária. poderíamos assim discriminá-las:


a) O livro se abre com a seguinte expressão: “No princípio…", essa expressão faz eco a Gn. 1:1: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Dito isto, o livro do Gênesis se põe a descrever uma série de sete dias em que Deus trabalha em sua obra para, por fim, repousar. Ora, o Apóstolo São João em seu Evangelho parece querer recapitular a narrativa do Gênesis, propondo-a como preliminar de nova criação e restauração do gênero humano; restauração essa, realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo a partir de um "sétimo dia” (Jo. 5:17)... Observe-se que no cap. 1 o Apóstolo refere colóquios do Senhor Jesus com seus discípulos, assim como o testemunho de São João Batista, distribuindo-os todos por um espaço de sete dias contados quase de um a um com solicitude. Note-se que durante os seis primeiros dias o Senhor não faz nenhum milagre, ou seja, não parece retocar a ordem das coisas antigas. Todavia, no sétimo dia, justamente quando, de acordo com o Gênesis, a obra da criação cessa, Cristo é apresentado efetuando seu primeiro milagre ou “manifestando a sua glória”, como diz São João em 2:11. E é a partir desse prelúdio que o Senhor começa a sua taumaturga obra restauradora, deixando ver que a Redenção é obra paralela a Criação, ou melhor, é NOVA CRIAÇÃO em plano superior; não somente ela começa onde a outra acaba, mas dá sentido e valor pleno ao homem e aos elementos com que o homem tratava no Antigo Testamento - o que se simboliza pela transformação da água, criatura insípida, em vinho, elemento saboroso (23).


Eis a enumeração dos dias de prelúdio que desembocam manifestação do "Novo Criador" (24):


- Jo 1:19 - primeiro dia: (testemunho do Batista perante os sacerdotes e levitas ).

- 1:29 - Segundo dia: (novo testemunho do Batista: "Eis o Cordeiro de Deus").

- 1:35 - terceiro dia: (vocação de André e seu companheiro).

- 1:43 - quarto dia (vocação de Filipe ).

- 2:1 - sétimo dia (celebração das bodas em Caná ).



b) Todavia não é apenas sob o aspecto de nova criação a corresponder com a criação antiga que São João liga seu Evangelho ao Velho Testamento. O povo de Israel trazia fortemente consigo a memória de um episódio de “Redenção” que ficara fortemente arraigado em sua espiritualidade: referimo-nos a libertação do povo judeu da escravidão no Egito, esse episódio era considerado prenuncio do que se verificaria quando o Messias viesse para libertar do cativeiro do pecado o gênero humano inteiro, assim sendo, o quarto Evangelista não hesita em mostrar como as figuras do Êxodo (25) se cumpriram na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo; notem-se os tópicos:


  • Jo. 1:4 - “O Verbo se fez carne e armou sua tenda (25) entre nós, e contemplamos a sua glória". O texto lembra a tenda movediça de peles, em que Javé habitava com seu povo durante a travessia do deserto; essa tenda era recoberta por uma nuvem de esplendor (shekinah) a denotar a presença de Deus (cf. Ex. 33:7-11 e 18-23; 40:34). O Evangelista observa que a nova mansão, da qual transparece a shekinah, a glória do Senhor, já não é a tenda inanimada do deserto, mas vem a ser a carne de Cristo; através desta, transpareceu a glória da Divindade (na Transfiguração, na Ressurreição...), que os Apóstolos e discípulos puderam contemplar com deleite, ao invés do que se dava com os filhos de Israel no Antigo Testamento, sempre afugentados pelas revelações majestosas de Javé.

  • Jo. 3:4 - "Assim como Moisés exaltou a serpente no deserto, assim é preciso que seja exaltado o Filho do homem, a fim de que todo aquele que creia nele, tenha por Ele a vida eterna". Eis que o quadro da serpente de bronze do Antigo Testamento revive e se consuma no episódio do Filho do homem erguido sobre a Cruz; Este salva, não como a serpente, para a vida temporal, mas para a vida eterna (cf. Num. 21:4- 9).

  • Jo. 6:32,48,59: Jesus promete maná… Não, porém, maná que não preserve da morte, como o do deserto (cf. Ex. 16:2-36; Num 11:4-9), mas o maná que faz vencer a própria morte, senho a carne do Senhor no sacramento da Eucaristia.

  • Jo 7:37-39: "No último dia da festa, dia solene, Jesus em pé exclamava: "Se alguém tem sede, venha a mim, e beba. Quem crê em mim, como diz a escritura, rios de água viva correrão do seu ventre". Jesus assim falava do Espírito que deviam receber aqueles que cressem n’Ele, pois o Espírito ainda não fora dado, já que Jesus ainda não fora glorificado". Esta passagem profundamente simbolista alude ao rochedo do qual jorrou água no deserto (cf. Êx. 17:1-7); a santíssima humanidade de Cristo é apresentada como o novo rochedo que, principalmente após a sua glorificação, faz redundar sobre os fiéis a plenitude da graça e dos dons do Espírito Santo ("do seu ventre", isto é, da natureza humana do Messias; "água viva", isto é, a graça).

  • Jo 8:12: "Eu sou a luz do mundo; quem Me segue, não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida" (cf. 12:46). A coluna de nuvem ou de fogo que precedia o povo de Deus, indicando-lhe o caminho na solidão (cf. Ex. 40:36-38), vem a ser o próprio Cristo, luz do mundo.

  • Jo 19:36 (cf. 1:29): O Evangelista narra que não quebraram os ossos do Crucificado, mas respeitaram-No como se respeitava o Cordeiro pascoal, a fim de que se cumprisse a profecia... O Senhor Jesus torna-se nesta perspectiva o verdadeiro Cordeiro pascoal, cujo sangue apaga os pecados do mundo; cf. Êx. 12:46; Num 9:12.


Eis como a história do êxodo, ou da redenção, transfigura-se e é utilizada no quarto Evangelho. Por isso o Evangelho de São João é com razão profundamente sacramental, ou seja, marca-se pela perspectiva do “sacramentum”, do mistério da dispensação da graça na Antiga e na Nova Lei; nesse livro, a vida do Senhor Jesus aparece como antítipo prenhe da realidade sobrenatural que os tipos do Antigo Testamento prenunciavam palidamente (ora de forma mais acentuada, ora de forma menos acentuada).


3 - Mensagem Teológica e Historicidade


a) Partindo do que acima foi dito, conclui-se que os episódios (que são poucos se comparados aos dos sinóticos) narrados pelo quarto Evangelho foram escolhidos pelo hagiógrafo unicamente pela profundidade de seu ensinamento religioso (27). Por isso os milagres de Cristo em São João vem apresentados como seméia, sinais por excelência, ao passo que nos sinóticos são apresentados como dynameis, manifestações de poder (cf. Jo. 2:11,18,23; 3:2; 4:54; 10:38; 14:11; 20:30); não raro São João relata em torno dos feitos de Jesus um sermão em que o Senhor explica o significado transcendente da obra realizada: assim, em Jo. 6 (a multiplicação dos pães é elucidada pela promessa do Pão do céu), em Jo. 8:9 (cura do cego de nascença acompanhada de considerações sobre luz e cegueira do espírito), em Jo. 11 (ressurreição de Lázaro, que serve de base a um ensinamento sobre morte e imortalidade); em Jo. 2:1-11 , por ocasião das bodas de Caná, em um "equívoco" muito caro ao Evangelista e, sem dúvida, muito gracioso, Jesus é insinuado como o verdadeiro esposo que guardou o vinho bom até a última hora (cf. 2:10 ); em Jo. 2:13-22 a purificação do Templo de Jerusalém dá ensejo a que Cristo aluda ao templo vivo de seu corpo.


Em “Le Quatrieme Evangile”, pag 45, A. Loisy, mesmo sendo um autor liberal e modernista, reconheceu o significado dos episódios do quarto Evangelho; disse o autor: "Feitos e discursos se condicionam mutuamente na obra de S. João; a doutrina entra nas narrativas, e as narrativas fazem parte da doutrina" e prossegue: "O autor quis mostrar o Cristo... Seu Cristo é o Verbo Encarnado; seu Evangelho é igualmente uma Encarnação, a representação sensível do mistério de salvação que se cumpriu e se prossegue pelo Verbo-Cristo. Sermões e narrativas contribuem para essa revelação do Salvador; os fatos descritos, na qualidade de símbolos diretos e sinais expressivos das realidades espirituais; os sermões, na qualidade de ilustração e complementação das narrativas, visando explicar o sentido profundo que essas têm. A rigor, as obras de Cristo, seus milagres, são os sinais, e os sermões a elas se prendem como um comentário que se prende ao texto que ele explica. Assim o Evangelho de São João é, como Cristo, constituído por um espírito divino recoberto por uma face humana; é o espírito interior que o leitor deve procurar e ao qual deve dar fé através do símbolo; já que o Cristo de São João é uma espécie de alegoria viva, tudo que Ele disse e fez sobre a terra, participa com Ele do espírito e da carne. Na simples verificação deste fato tem-se a chave do problema joaneu" (Le Quatrieme Evangile 76).


b) A vista disso, poder-se-ia talvez julgar que o quarto Evangelista, cedendo à sua tendência doutrinária e simbolista, perdeu o contato com a realidade histórica, elaborando longas divagações meramente alegoristas, de sorte a não merecer crédito por parte do historiador (28); todavia tal afirmação seria inverossímil, após atento exame do Evangelho de João verificamos que o Evangelho que soa de forma mais simbólica é, na verdade, o que mais porta testemunho da verdade histórica, de forma que aquele que queira reconstituir a cronologia e a topografia da vida de Nosso Senhor, se vê forçado a tomar por base a obra de São João Evangelista. Efetivamente, o filho de Zebedeu estava muito longe de entender os “sinais” do Evangelho como episódios imaginários e sem realidade. Pelo contrário, mais do que nos sinóticos, insistiu em referir circunstâncias que comprovassem a historicidade dos acontecimentos que narram. É o que se verifica na cura do cego de nascença (os judeus incrédulos instituem longo inquérito sobre o "caso"; cf. 9:11,13,18,24); na ressurreição de Lázaro (estava realmente morto, inculca o Evangelista, pois o cadáver já exalava mau cheiro, 11:39; o triunfo de Jesus, ao entrar em Jerusalém no domingo de Ramos, é apresentado como consequência desse prodígio, 12:17); na ressurreição de Cristo (Tomé não quer crer no milagre, mas finalmente se convence; cf. 20:24-29). São João ainda se esforça para mencionar, às vezes de forma muito minuciosa, circunstâncias de lugar e tempo dos episódios que relata, procurando assentá-los bem dentro da história real. A narrativa poderia passar sem essas menções sem, no entanto, perder sua essência; o fato de serem consignadas, apenas mostra que o Evangelista se sentia seguro do que dizia e da autenticidade de suas notícias. Além dos textos que citamos para corroborar nossa tese, merecem atenção os seguintes resultados da arqueologia contemporânea: No quarto Evangelho existem dez alusões à topografia da Palestina não encontradas nos sinóticos. Pois bem, destas, várias já foram, além de toda expectativa, comprovadas exatas.


Dois exemplos ilustrativos:


  • Em Jo 5:2, conforme se lê no texto grego, cita-se perto da Porta das Ovelhas, havia uma piscina que era chamada Bethzatha (nome que deve derivar do aramaico beze’ta = inciso ou tira, faixa) ou Bethesda, Casa da Misericórdia; a qual davam acesso cinco pórticos ou galerias. Alguns exegetas consideraram estranha a ideia de um lago pentagonal com cinco galerias contíguas e, em consequência disso, julgaram se tratar de um cenário alegórico; que a piscina simbolizaria a fonte espiritual do judaísmo e os cinco pórtico representaria a Lei de Moisés! Todavia, escavações arqueológicas acabaram por localizar a antiga piscina talhada na rocha e cercada de quatro galerias; ao meio estava dividida em dois recintos, cada qual de 48 x 68 m; o paredão divisório tinha a espessura média de 7.5m e sustentava, por sua vez, uma galeria. . . a quinta galeria ou o quinto pórtico da piscina - É o que justifica em Jo 5:2 a menção de cinco pórticos!


  • Em Jo 19:13 diz o Evangelista que Pilatos estabeleceu seu tribunal em um lugar chamado Lithóstrotos (em grego) , Gábbatha (em aramaico). Até os últimos anos, os exegetas não sabiam como identificar esse local, cujo duplo nome por nenhum outro documento era atestado. A nomenclatura parecia inverossímil, pois que Lithóstrotos (= Estrado de Pedra ) de modo nenhum é a tradução de Gábbatha (= Lugar Elevado). Ora em 1930 na antiga fortaleza Antônia, que ficava situada em lugar elevado de Jerusalém (na colina de Bezetha) , foi descoberto amplo pátio interno pavimentado de lajes, que chegam a medir por vezes 2 m de comprimento por 1,50 m de largura e 0,50 m de espessura ; de acordo com cálculos feitos sobre as ruínas, esse pátio deve ter abrangido a superfície de 2.500 m2. A imponência do local terá dado ocasião a que aos poucos se atribuísse ao Lugar Elevado (= Gábbatha) o nome de Estrado de Pedra (= Lithóstrotos; o novo nome era grego, pois que a construção da fortaleza Antônia com seu pátio foi empreendida por Herodes o Grande no período helenista). A descoberta desse recinto pôs fim às dúvidas dos exegetas, pois hoje se aceita comumente ter sido esse o local em que Pilatos instalou seu tribunal na manhã de sexta-feira santa, de acordo com os dados do Evangelista São João (São Marcos, em 15:16, menciona apenas um pátio interno como lugar em que os soldados escarneceram a Jesus, sem indicar o respectivo nome). Eis como o quarto Evangelista se mostra veraz, ultrapassando em precisão historiográfica os sinóticos. Em conclusão, a crítica verifica que São João soube fazer as vezes do historiador tão bem como as do teólogo.

Concluindo, verifica-se que São João soube fazer, de forma muito acertada, tanto as vezes de historiador como as de teólogo. Podemos dizer que, quanto mais místico e contemplativo foi, tanto mais foi concreto e objetivo em seus relatos. No Evangelho de São João, o ensinamento dogmático se torna cada vez mais persuasivo à medida em que vai se assentando cada vez mais na realidade histórica. O Evangelista parece ter tido consciência muito clara acerca disso.


TÓPICO TRÊS - DOIS ASPECTOS PARTICULARES DA MENSAGEM


Marcado pela esperança de suscitar a fé (Luz) e Vida, o quarto Evangelho se distingue por duas notas afins à anterior, condicionadas pelas circunstâncias vigentes pela época e local na qual o autor sagrado escrevia. Enunciemo-las:


1 - O Quarto Evangelho Obedece a Uma Finalidade Apologética


Para fomentar a verdadeira fé, São João levou em conta as primeiras heresias que, no fim do séc. I, iam nascendo no meio dos cristãos: tais heresias eram o Gnosticismo e o chamado Joantismo (adesão estreita e cega às idéias de São João Batista).


a) Havia na época uma corrente de pensadores, inspirados por um tal de Cerinto (29), que distinguiam entre “Jesus” e “Cristo”, afirmando que Jesus era mero homem, no qual desceu o Cristo (ou a Divindade) sob forma de pomba, por ocasião do batismo (cf. Jo. 1:32-34); o Cristo teria nele permanecido durante a sua vida pública, fazendo milagres por meio dele e permitindo que ele usufruísse de sua profunda ciência; na hora da paixão porém, Cristo abandonou Jesus, de modo que o mesmo padeceu e morreu mero homem (30)… São estes erros que levam o quarto Evangelista a inculcar ser Jesus, realmente o Cristo, o Filho de Deus (cf. 2:31)... a acentuar que o homem histórico, Jesus de Nazaré, é o próprio Deus (Logos) preexistente (1:14), havendo unidade na natureza entre o Pai do Céu e Jesus na terra (cf. Jo. 10:30). Principalmente a primeira epístola de São João (que vem a ser a carta de apresentação do Evangelho aos leitores) insiste em incutir tais teses (cf. Jo 2:22;4:2,14; 5:1,5-13).


b) Além disso, na antiga igreja havia um grupo de discípulos de São João Batista que nunca ultrapassara a escola de seu Precursor, furtando-se indevidamente à mensagem do Messias que seu mestre lhes apontava (cf. At. 18:25; 19:3). Isso explica as diversas alusões ao Batista no quarto Evangelho, tendentes a revelar o caráter humilde e subordinado do Precursor:

  • ”Não era éle a luz, mas veio para dar testemunho da luz"(1:8).

  • "Muitos foram ter com Jesus. Diziam: "João não fez sinal algum, mas tudo que ele afirmou a respeito desse homem (Jesus) , é verdade". Então muitos acreditaram nele" (10:41).

  • Os discípulos de João foram ter com João e disseram-lhe: "Mestre, aquele (Jesus) que estava contigo do outro lado do Jordão, a quem deste testemunho, ei-lo que batiza e todos o procuram! " João respondeu: "Ninguém pode atribuir a si coisa alguma que não lhe tenha sido dada do céu. Vós mesmos sois testemunhas de que disse: "Não sou o Cristo, mas fui enviado diante dele" (3:26-28).

  • "Quando Jesus soube que os fariseus haviam ouvido dizer que Ele fazia mais discípulos e batizava maior número destes do que João... deixou a Judeia..." (4:1-3).


Estes traços apologéticos de modo nenhum encobrem a face profundamente contemplativa do Evangelista, face que melhor se desvendará a seguir.


2 - O Quarto Evangelho Supõe os Sinóticos e Só Pode Ser Entendido Sobre o Fundo Destes


Não se pode dizer que o quarto Evangelho tenha sido escrito para suprir qualquer lacuna deixada por seus antecessores. No entanto, embora tendo suas próprias finalidades, o Apóstolo quis levar em conta a narrativa dos sinóticos como base para sua catedrática construção, consequentemente, o Cristo joaneu e certos dizeres do Evangelista podem parecer desarraigados ou desambientados ao leitor que desconheça os Evangelhos de Mt. Mc. e Lc. É o que depreende dos seguintes tópicos:


a) a leitura da história de Cristo nos sinóticos; por exemplo:


  • 1:15,19-34 - a brusca entrada em cena de João Batista, cuja genealogia e cujos antecedentes não são referidos (suponha-se Mt 3:1-12).

  • 1:29 - Jesus aparece pela primeira vez no cenário público, sem que o Evangelista diga algo da sua origem, do seu nascimento e da sua vida oculta. Note-se, outrossim, que São João fala da mãe de Jesus (2:1; 19:25) sem jamais a designar pelo nome, embora se refira a outras "Marias" (cf. 11:1; 19:25; 20:1). Mais ainda: no quarto Evangelho ocorre a expressão "Jesus, filho de José" nos lábios de concidadãos do Senhor; ora, o Evangelista a menciona (1:45; 6:42) sem experimentar a necessidade de explicar um título, no caso, tão ambíguo. Tais lacunas seriam imperdoáveis num escritor que não supusesse outra fonte de informações.

  • 3:24 - "João ainda não fora encarcerado". O quarto Evangelista não narra o encarceramento; não obstante, menciona-o nesta passagem porque o julga conhecido aos leitores através de Mt. 4:12.

  • 11:1 - “... Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta". Para que tanta precisão? - Para concatenar o importante episódio de Jo. 11 (a ressurreição d e Lázaro) com o de Lc. 10:38-42 (a visita de Jesus à casa das duas irmãs de Lázaro) .

  • 11:2 - "Maria era aquela que ungiu o Senhor com perfume e lhe enxugou os pés com a sua cabeleira:". Qual a unção a que alude o Evangelista em verbos de tempo passado? - Não pode ser senão a que éle ainda está para narrar no seu cap. 12; apresenta -a, porém, como fato já realizado, porque a supõe conhecida aos leitores através de Mt. 26:6- 13; Mc. 14:3-9.

b) Em outros textos São João alude acontecimentos já referidos pelos sinóticos, ou mesmo repete-os, tendo em vista no entanto lhes acrescentar um ou outro traço novo que lhes facilite o entendimento:

  • Jo. 1:35-51 narra os primeiros contatos de Cristo com os discípulos, explicando assim a rápida aquiescência dos mesmos ao chamado definitivo do Mestre em Mt. 4:18-22.

  • 6:1-15 - à narrativa sinótica da multiplicação dos pães (Mt. 14: 13-21; Mc 6:32-44; Lc. 9:10-17) São João, entre outras coisas, acrescenta dois pormenores de importância teológica: a data (perto de Páscoa) e o efeito do milagre (excitou-se a consciência messiânica do povo, que quis fazer de Jesus o seu Rei); cf. Jo 6:4,15.

  • 12:12-19 - o solene ingresso de Jesus em Jerusalém é mencionado com certa brevidade (compare-se com Mt. 21:1-11; Mc 11:1-11; Lc. 19:28-44); mas o Evangelista acrescentou um traço de grande significado: a causa do triunfo de Cristo foi a ressurreição de Lázaro (de novo, alusão à consciência messiânica do povo).

  • 13:21-30 - Jesus indica o nome do traidor, após ter sido solicitado pelo "discípulo que Ele amava" (o pormenor se deve a uma reminiscência pessoal do Evangelista).

  • 18:10 - Pedro, que desembainhou a espada, e Malco, cuja orelha foi amputada... Os dois nomes são referidos somente por São João, que se interessava muito por tudo que dizia respeito a Pedro.

  • 18:15-17 - Pedro conseguiu entrar no pátio do Pontífice, onde a porteira o reconheceu e denunciou como discípulo do acusado... A causa remota de toda essa "tragédia" é relatada pelo quarto Evangelista: foi São João quem, por suas boas relações, obteve o ingresso de Pedro, dando-o inocentemente a conhecer à porteira…

  • 18:33-38 - Jesus afirma ser Rei; não obstante, como se sabe por Lc. 23:3, Pilatos não o condenou como rebelde; antes chegou a declará-lo inocente. Isto seria estranho se não se conhecessem as explicações referidas por São João: o reino de Cristo não é deste mundo; se fosse tal, seus legionários teriam entrado em combate naquela hora; Jesus veio ao mundo dar testemunho da verdade... - E que é a verdade para o cético Pilatos, que, após haver interrogado, logo se retira da presença de Jesus?

c) Acontece também que São João omite episódios importantes da vida de Jesus, justamente porque já os supõe notórios aos leitores. Assim, por ocasião da última ceia, embora acrescente ao relato sinótico a cena do lava-pés, omite a instituição da S. Eucaristia. Em compensação, o quarto Evangelista refere a teologia da S. Eucaristia no cap. 2 (conversão da água em vinho, 2:1-11, milagre que manifesta a autoridade de Jesus sobre os elementos) e no cap. 6 (multiplicação dos pães, 6:1-15, que indica o poder de Cristo sobre o pão; caminhar de Jesus sobre as águas, 6:16-21 , que revela o poder do Senhor sobre o seu corpo; por fim, apresentação doutrinária de um pão que será verdadeiramente o corpo de Cristo, 6:22-66). São João silencia outrossim a solene promulgação do Batismo encontrada em Mt. 28:16-20 , mas apresenta uma genuína teologia deste sacramento no colóquio do Divino Mestre com Nicodemos (3:1-15).



TÓPICO QUATRO - CONTEMPLAÇÃO


Como certamente foi notado pelo leitor nos parágrafos acima, o quarto Evangelho comporta evidentes vestígios de estilo semita, além de uma mensagem simbolista. Analisemos estas características de redação:


1. Em termos gerais, podemos dizer que em São João se encontra um dualismo continuado ou um conflito constante entre pares antagônicos que, embora sejam sempre os mesmos, vão tomando aspectos e nomes diversos a medida que sua narrativa evolui:

  • Deus - Mundo,

  • Trevas - Luz,

  • Pecado - Verdade,

  • Morte - Vida.

O vocabulário do Evangelista é pobre; contam-se talvez quatorze termos mais frequentemente utilizados pelo autor: Luz, Trevas, Vida, Pecado, Mundo, Verdade (verdadeiro), Juízo, Pai, Testemunho (testemunhar) , obras, "Aquele que Me enviou", amar, conhecer, crer. Todavia, não obstante a simplicidade, o Evangelista sabe cativar o leitor: ele vai jogando suas palavras (ora em sentido próprio e ora figurado), de modo a formar associações, contrastes, alusões delicadas (expressas de maneira tênue mas suficientemente compreensíveis) mediante tais artifícios, os seus episódios se apresentam todos prenhes de doutrina e significação. Diz-se que os “silêncios” de São João são eloquentes… O Evangelista abre alamedas em uma densa floresta; percorre com o leitor uma parte do trajeto; depois o deixa entregue a si mesmo, para que tome consciência do termo ao qual tendo o caminho ou o rumo indicado...


2. Tal qual predador que rodeia a presa até que possa lhe aplicar o bote final, São João desenvolve paulatinamente o seu pensamento, percorrendo círculos concêntricos que lhe permitem considerar o assunto sob aspectos diversos, até que, em dado momento, possa proferir a ideia que o empolgava (31). Pode-se dizer que o Evangelista sabia que a realidade sobrenatural é grandiosa demais para ser expressa de uma única vez; sendo necessário tentar circunscrevê-la de modos diversos para não a desfigurar. Note-se que, ao desenvolver seu pensamento, São João não o faz por meio de raciocínios e conclusões, mas o faz por meio de acréscimos, de complementos justapostos paralelamente.


Dois exemplos, demonstram o proceder contemplativo do Evangelista:


a) Consideremos o tema da união no quarto Evangelho: a unidade existente entre o Pai e o Filho é expressa por meio de uma sentença simples: “Eu e o Pai somos um” (10:30); essa unidade apoia-se em uma realidade duplamente afirmada pelo Apóstolo: “Em mim está o Pai e Eu estou no Pai” (14:38), ou em ordem inversa: "Eu estou no Pai, e o Pai está em Mim" (14:10).


Considere-se agora os discípulos (alarga-se o círculo contemplativo), estes se relacionam com o Filho de forma paralela ao modo que o Filho se relaciona com o Pai, note-se: “Eu estou em meu Pai, e vós em Mim e Eu em vós” (14:20). Assim, os discípulos participam da mesma unidade vigente entre o Pai e o Filho: "Sejam todos um só. Como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, também sejam eles um só em nós" (17:21). Por fim, consuma-se a união: "Eu neles e Tu em Mim, para que sejam consumados na unidade" (17:23).


b) Outro exemplo se dá no momento da despedida do Senhor Jesus durante a última ceia (13:33 - 17:26); embora creia-se compilado a partir de diversas alocuções do Senhor, o sermão se enquadra dentro de certo ritmo, nele se distinguem duas partes, cada uma das quais repete sucessivamente os temas do amor, do consolo e da união:


Primeira parte:

  • o preceito do amor: 13:34;

  • Jesus consolará os seus, atraindo-os ao Pai, voltando a eles, enviando-lhes o Espírito: 14:1-31;

  • a união de Cristo com os fiéis é descrita mediante a alegoria da videira e dos ramos: 15:1-11.

Segunda parte:

  • A comunhão de amor entre os discípulos, em oposição ao ódio do mundo: 15:16-24;

  • O consolo será trazido pelo Paráclito, que dará aos discípulos a vitória sobre o mundo mau: 16:5-33;

  • A oração sacerdotal de Jesus pede união consumada dos fiéis entre si e com Deus: 17:1-26.

c) A índole contemplativa do quarto Evangelho se manifesta ainda na ocorrência dupla ou trina de alguns pensamentos de importância crucial:


  • Exaltar o Filho do Homem: 3:14; 8:28 e 12:32-34.

  • Jesus não veio condenar: 3:17-19; 5:24; 12:46-48.

  • Jesus é a luz do mundo: 1:9; 3:19; 8:12; 12:46.

  • A doutrina de Jesus não é de Jesus, mas do Pai: 7:16; 12:44-49.

  • O Pai faz as obras e dá testemunho: 5:36; 10:25-37; 14:10-12.

  • Jesus no Pai e o Pai em Jesus: 10:30-38; 12:44; 14:9,11,20.

  • Procurar a Jesus e não o encontrar: 7:34,36; 8:21; 13:33

Não raro o próprio Evangelista interrompe o relato histórico, a fim de inserir suas reflexões nos mesmos, recapitulando dizeres de Cristo esparsos pelo Evangelho; cf. 3:16-21; 3:31-36; 12:37-50.


d) Merece atenção a repetição de algumas expressões características do estilo joaneu:


  • "Vem a hora (e já veio)”: 4:21,23; 5:25,28; 16:2,25,32.

  • … que desce dos céus: 3:13; 6:41,5 1,58.

  • Vós não sabeis…: 1:26; 4:22; 7:28.

  • "Eu sou o pão da vida...": 6:35,48,51.

  • "Se alguém não nascer do alto...": 3:3,5.

  • "Não são do mundo, como eu não sou do mundo" : 17:14,16.

  • "Um pouco, e não Me vereis; mais um pouco, e Me vereis": 16:16,17,18,19.

Às vezes a repetição possui caráter antitético, ou seja: a mesma ideia se expressa positiva e negativamente:

  • 1:3: "Tudo foi feito por Ele; nada foi feito sem Ele".

  • 1:8: "João não era a luz... O Verbo era a Luz".

  • 1:20 : "Confessou, não negou, confessou...".

Tais repetições contribuem, sem dúvida, para dar um ritmo poético ao Evangelho, fazendo as vezes de estribilhos cantantes.


e) O Evangelista emprega com certa frequência palavras que podem trazer dupla interpretação (uma própria, outra metafórica), manifestando destarte a sua tendência simbolista. Tais palavras, quando atribuídas a Jesus, provocam, às vezes, mal-entendidos nos ouvintes do Senhor. Nestes e em outros casos, o próprio Cristo (ou por vezes o Evangelista) se encarrega de elucidar o autêntico sentido da frase. Vejamos textos em que Jesus recorre a expressões figuradas e quem os explica de fato:

  • 2:19 - Imagem do templo: explicação dada pelo Evangelista em 2: 21 ( "o templo do seu corpo");

  • 3:33 - Nascer do alto: explicação dada por Jesus em 3:5-8 (o Batismo);

  • 4:10,1 4; 7:37 - a água viva: explicação dada pelo Evangelista em Jo 7:39 (o Espírito Santo e a graça).

  • 4:32 - o alimento de Jesus: explicação dada por Jesus em 4:34 (a vontade do Pai );

  • 4:35-38 - a messe madura: provérbio explicado pelo contexto mesmo (cf. Mt 9:37; Lc 10:2: as almas à espera dos Apóstolos);

  • 6:32,35,41,48,50 - o pão vivo ou do céu: explicação dada por Jesus em 6:51-56 ( texto grego; Vg. 52,56) : o corpo e o sangue do Senhor na Eucaristia;

  • 8:32 - a verdade liberta: explicação dada por Jesus em 8:34 (trata-se da escravidão do pecado).

  • 11:11 - "Lázaro dorme":explicação dada pelo Evangelista em 11:13 (o sono da morte; análogo em Mt 9:24);

  • 11:50 - "morra alguém pelo povo": explicação dada pelo Evangelista em 11:51 (a morte redentora do Cristo).


Eis enfim algumas expressões figuradas e simbolistas do Evangelista acerca do Cristo:

  • Luz do mundo : 8:12; 12:35,46.

  • Porta das ovelhas: 10:7.

  • Bom Pastor: 10:11.

  • Ressurreição e Vida: 11:25.

  • Via, Verdade e Vida: 14:6.

  • Verdadeira videira: 15:1.


O cuidado de esclarecer as metáforas mostra que o Evangelista não se considera a pairar sobre um mundo irreal e ambíguo, mas, com todo o seu simbolismo, quer ater-se à realidade histórica e, na base desta, propor o mistério de Cristo; aos olhos da fé, o mundo sensível é todo transparente (32).


TÓPICO CINCO - DIVISÃO DO QUARTO EVANGELHO


São João dispôs sua narrativa sob uma ordem cronológica muito minuciosa, cujos pontos cardeais são as festas celebradas pelos judeus durante a vida pública de Nosso Senhor; o Evangelista distingue as seguintes solenidades judaicas em torno das quais se concentram os ditos e os feitos do Senhor:

  • 2:13 - a primeira Páscoa;

  • 6:4 - a segunda Páscoa;

  • 7:2 - a festa dos Tabernáculos ou Cenopégia;

  • 1 0:22 - a festa das Encênias ou ‘da Dedicação do Templo’;

  • 11:55; 12:1; 13,1 - a terceira Páscoa.

Há ainda uma alusão a uma “festa entre os judeus” (5:1). Os códices variam no uso do artigo antes da expressão; trata-se “de uma festa” ou “da festa”...? “A festa” , simplesmente dita, seria a Páscoa (solenidade por excelência do povo judeu); a grande maioria dos manuscritos, no entanto, trazem “uma festa dos judeus”. E qual seria esta? Auscultando unicamente os códices não se poderia resolver o problema. A solução se encaminha, então, por outra via. Comentadores modernos apoiados em Taciano (séc. II), julgam que a ordem dos capítulos 4-7 do Evangelho está invertida; inicialmente dizem que o capítulo que hoje se encontra como sendo o sexto, precedia o quinto, de sorte que a série assim se delinearia: cap. 4, cap. 6, cap. 5, cap. 7.


Os exegetas levantaram essa hipótese pelo fato de considerarem o texto, tal como se encontra, obscuro. No começo do cap. 6 lê-se: "Depois disso, Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia" (v. 1). Ora o cap. 5 apresentava Jesus na Judeia (em Jerusalém); sendo assim, a indicação de 6:1, com a brusca transição que ela pressupõe, torna-se estranha; o texto diz que Jesus vai para a outra banda do mar, sem sequer mencionar em que banda se achava. Além disto, o cap. 7 se abre com a seguinte referência: "Depois disso, Jesus percorria a Galileia; já não podia circular pela Judeia, pois que os judeus O procuravam matar.". O versículo supõe dificuldades recém-ocorridas na Judeia; contudo o cenário do cap. 6 é exclusivamente a Galileia; é no cap. 5 que Jesus aparece a sofrer as invectivas dos judeus em Jerusalém. A fim de remover essas dificuldades, surge a solução: inverter os capítulos atuais 5 e 6 do Evangelho. Obtém-se então uma série de acontecimentos concatenados entre si: no cap. 4 o Senhor Jesus passa pela Samaria em demanda da Galileia; no cap. 6 exerce seu ministério na Galileia, culminando no sermão sobre o pão da vida; no cap. 5 volta a Judeia, ou seja, sobe a Jerusalém por ocasião de uma festa dos Judeus (cf. 5:1), que poderia ser a Páscoa mencionada em 6:4 ou festa de Pentecostes (que era cinquenta dias após a Páscoa); em Jerusalém, porém, a cura do paralítico provoca um conflito, após o qual o Senhor corre risco de vida, sendo por isto obrigado a se retirar para a Galileia e ali permanecer (7:1). Parece claro que no cap. 7 os vv. 1,19 e 25 se referem a 5:18; os vv. 21-24 a 5:8-12. A ordem dos capítulos hoje usual dever-se-ia, sob tal hipótese, a uma falha dos antigos copistas, que inverteram a série dos episódios narrados. Chama a atenção o fato de que Taciano no séc. II adotava a ordem: cap. 6 - cap. 5. Contudo, faça-se ou não a inversão dos capítulos, não é de crer que o versículo 5:1 aluda a uma festa de Páscoa distinta da mencionada em 6:4; trata-se, como dissemos, da mesma solenidade ou da de Pentecostes subsequente, de sorte que a vida pública de Nosso Senhor deve ter compreendido três Páscoas e se enquadra na moldura de dois anos e meio aproximadamente.


Supondo-se a inversão dos capítulos 5 e 6, eis como se desenvolvem os acontecimentos no Evangelho de São João (33):




Toda a matéria acima também é por alguns comentadores agrupada em duas grandes seções :


  • Prólogo - 1:1-18;

  • Primeira Parte: A vida pública do Senhor - 1:19 à 12:50;

  • Segunda Parte: 13:1 à 21:25.


Estes dois períodos cronológicos da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo correspondem a duas fases progressivas de Seu santo magistério: no período de vida pública (cap. 1 a cap. 12) Cristo se dirige aos judeus em geral, ao passo que do capítulo 13 em diante Ele se dedica à formação dos Apóstolos em particular. A primeira parte é marcada por duas grandes defecções ou manifestações de incredulidade: a dos Galileus em Cafarnaum (6:66; Vg. 67) , e a do judaísmo oficial em Jerusalém (11:45-53).


Encerramos aqui nosso pequeno passeio pelas páginas do Evangelho de São João. Esperamos que o mesmo se torne um marco inicial para a caminhada do leitor em direção a um contato mais estreito com a Palavra do Deus Vivo, que possa aprendê-la de cor, dar-se a repetidas leituras da mesma, entregar-se à longas meditações acerca dela e que tudo isso culmine em uma maior abertura à comunhão com o Verbo Divino.


Procurar o infinito e penetrar nos tesouros da sabedoria de Deus, para isso a aliança foi feita; "Buscai a Deus e a vossa alma viverá" (Sl. 68:33).





Notas:



1) no fim do séc. II, são já numerosos os testemunhos que atribuem o 4° Evangelho ao apóstolo S. João: Tertuliano, Teófilo de Antioquia, S. Irineu, bispo de Lião, discípulo de S. Policarpo e este discípulo de S. João; cerca do ano 185, escrevia: “João, discípulo do Senhor, que repousou sobre o seu peito, escreveu também o seu Evangelho, quando vivia em Éfeso na Ásia”. Também Clemente de Alexandria escreveu alguns anos depois de S. Irineu que “ segundo a tradição dos Antigos, João, o último dos evangelistas, escreveu sob a inspiração do Espírito Santo e a pedido dos seus discípulos”. Até judaizantes e gnósticos como Basílides e Valentim dizem explicitamente que S. João escreveu o último Evangelho, o qual estava já espalhado em todo o mundo cristão em meados do século II, cem anos depois da sua composição, o que é muito pouco.


2) De acordo com Ernest-Bernard Allo, O.P, a ordem “Evangelho, Apocalipse e Epístolas" corresponde unicamente à doutrina dos escritos joaneus. Cronologicamente a ordem se dá da seguinte forma: Apocalipse, redigido quando S. João se viu exilado na ilha de Patmos (cerca do ano 95 d.C); Evangelho: Composto quando retornou à sua sede episcopal em Éfeso (Ásia Menor) a fim de dissipar teorias que se erguiam e ameaçavam a pureza da fé de sua comunidade; Epistolário, escrito em época incerta, a primeira epístola foi escrita como uma apresentação ao Evangelho (as demais são assaz afim a primeira).


3) Conseguem entender agora o porque a Ordem Retificada deve, conforme idealizado por seus fundadores, voltar-se à uma beneficência ativa e esclarecida? Sem ela, o fiel que compõe o corpo místico de Nosso Senhor, a Igreja de Cristo, perde-se completamente e é incapaz de participar do triunfo sobre as trevas.


4) Teofilato, escritor bizantino do séc. XI, ao comentar este título, afirma que nada significava de pejorativo, mas, antes, correspondia à índole de "eminentes pregadores e teólogos" que eram João e Tiago (ln Me 3,17 ; ed. Migne gr. 123, 523). Interpretação talvez demasiado benigna para com os dois irmãos!


5) S. Epifânio (? - 403) informa que João escreveu o Evangelho já após o seu nonagésimo ano de vida (Haer. 51,12,2). Agápio de Hierápolis sabe dizer, outrossim, que depois da Paixão do Senhor o discípulo bem-amado viveu 71 anos, morrendo no sexto ano do Imperador Trajano (Patrologia Orientalis 7, 503). Foi a extrema velhice do Apóstolo que deu lugar à crença, propalada na primeira geração cristã, de que João não morreria; tal opinião parecia, aliás, corroborada pelos misteriosos dizeres do Senhor referidos em Jo. 21:20-23.


6) Pitis Sophia 41,96 ; Acta Joannis 113. Em particular, o "Prólogo Mo­narquiano", documento do séc. II ( ed. Lietzmann I 13) , faz notar que a Virgem Santíssima foi confiada a João virgem. Existe, porém, a lenda (carecendo de qualquer autoridade) segundo a qual São João mesmo teria sido o espôso visitado por Jesus nas bodas de Caná (Jo 2:1-11 ).


7) De praescriptione haereticorum 36. Ter-se-á assim cumprido a predição de Cristo conforme a qual João e Tiago deviam beber o cálice do Senhor, cálice do martírio (cf. Mt. 20:23).


8) Notícia devida a certo Apolônio, bispo na Ásia Menor, provavelmente em Éfeso, por cerca de 197 (cf. Eusébio, Hist. Ecl. 5, 18, 14).


9) ln Gal 6:10.


10) Ed. R . A. Lipsius I 426.


11) ln Jo tr. 124,2 cf. Gregório de Tours, Hist. Franc . 1, 24 .


12) Tese, proposta pela primeira vez em 1792 pelo autor inglês E. Evanson, que atribuiu o quarto Evangelho a um escritor platônico do séc. II e que deu origem a amplos debates.


13) Para não alongar muito o artigo não vamos nos dedicar a examinar aqui os dados do problema e nem apresentar a sua autêntica solução. Embora estejamos cônscios que tal estudo possibilite que se alcance uma maior compreensão da mensagem particular do quarto Evangelho e fortaleça a ação apologética a qual nos dedicamos, cremos que o texto muito longo se tornará cansativo para as formas através das quais será veiculado. Assim, trataremos a questão em texto futuro, texto que possibilitará ao leitor aprofundar-se ainda mais no conhecimento da Palavra de Deus e em especial no Evangelho do Apóstolo amado.


14) Por exemplo, Rabbi, Rabboni, Mestre, em 1:38 ; 20:16; Messias, Cristo (em grego), Ungido, em 1:41; Cephas, Pedro, em 1:42; Siloé, Enviado, em 9:7; Gábbatha (nome aramaico = Lugar eminente), que os gregos substituíram (não traduziam propriamente) por Lithóstrotos (= Estrado de pedra) ; cf. 19:13; Gólgotha, Calvário, em 19:17.


15) Por exemplo, à designação de "Mar da Galileia" o Evangelista acrescenta o título mais usual entre os gregos: ". . . de Tiberíades" (6:1).


15-A) Notem-se as seguintes passagens: 2:6 (seis jarros de pedra destinados aos ritos de purificação dos judeus); 4:9 (os judeus não têm relações com os samaritanos); 7:2 (a festa judaica dos Tabernáculos); 10:22 (celebrava-se em Jerusalém a festa da Dedicação; era inverno); 11:,55 (antes de Pascoa, muitos judeus subiram a Jerusalém para se purificar); 18:28 (os judeus que deviam comer a Páscoa, não entraram no pretório para não se contaminar).


16) Presente no fragmento de Muratori que é uma cópia da lista mais antiga que se conhece dos livros do N.T. Foi descoberta na Biblioteca Ambrosiana de Milão por Ludovico Antonio Muratori (1672-1750) e publicada em 1740.


17) A adição do papiro se deve a C. H. Roberts, “An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel in the John Rylands Library”, With Facsimile. Manchester 1935.


18) Na filosofia grega, a trajetória do logos é bem conhecida; na física de Heráclito (535-475 a.C.), o logos parece ter a função de corrigir os desvios da eterna lei que governa as coisas. O pensador grego lhe concede, portanto, o poder de conferir ordem e racionalidade ao kosmos. Daí, o significado mais comum de logos: “razão”. Em Platão, o logos perde um pouco de seu destaque, assumindo uma posição secundária em relação a outros elementos ordenadores do mundo: a “sabedoria” (sophia) e a “mente” (nous). Com os estóicos, o logos ganha pessoalidade, assumindo três aspectos: “disseminado” (spermatikos), “expressivo” (prophorikos) e “inexpressivo” (endiatetos). Em Filo, finalmente, o logos assume caráter hipostático, ora se limitando a uma faculdade ou atividade, ora expressando uma pessoalidade enfática, por cuja causa acaba denominado de filho, primogênito de Deus, mediador, entendimento divino planejador, pastor do rebanho, sumo-sacerdote, advogado, arcanjo, vice-rei, seio materno, penhor, pilar, princípio e arquétipo. Como se percebe, o logos de Filo varia da impessoalidade para a pessoalidade, do atributo para a substância. Além disso, pode-se acrescentar o tratamento que o logos recebeu das religiões helenísticas, que o viam como um meio de salvação. Em “The prologue of the gospel of John”. Review & Expositor, v. 62, n. 4, p. 460, 1965, Raymond B. Brown diz: “Em primeiro lugar, trata-se de um notável esforço para ganhar a atenção de seus leitores judeus e gregos. Mesmo o primeiro verso contém o termo Verbo ou logos, que significava, para um judeu, a autoexpressão de Deus e, para um grego, a impessoal realidade racional. Os leitores seriam inclinados a inserir aí sua própria compreensão do Verbo. Mas o autor prosseguiu para levá-los à sua compreensão do Verbo ou logos como Deus em Sua atividade pessoal, criativa e redentora”.


19) É, sem dúvida, pela água do Batismo que Cristo confere estes dois dons aos homens. Antigamente o Batismo era mesmo chamado photismós, iluminação; cf. Hebr. 6:4.


20) Em “Para Entender o Antigo Testamento”, cap. X, Dom E. Bettencourt demonstra que os antigos, e a própria Sagrada Escritura do Antigo Testamento, costumavam associar entre si sangue e vida.


21) A tradição cristã relaciona a água e o sangue que jorraram do lado de Cristo na cruz com os dois principais sacramentos ou, em geral, com os sacramentos. Estes são justamente os canais que fazem chegar a graça do Salvador a cada indivíduo através dos séculos .


22) As observações acima devem-se ao Pe. Ernest-Bernard Allo em “L’evangile Spirituel de Saint Jean, Suivi de le Regne de Dieu et le Monde”, Como se compreende, nada tem de dogmático; no entanto constituem uma feliz tentativa de compreender o pensamento do Evangelista. Quando mais não seja, as anotações do Pe. Allo têm a vantagem de chamar a atenção do leitor arara certos particulares marcantes do quarto Evangelho.


23) Muito a propósito vêm algumas palavras de Santo Ambrósio a comentar a cura da sogra de Pedro em Lc 4:38. Este milagre, que Jesus realizou em pleno sábado juntamente com algumas libertações de possessos, era a primeira cura milagrosa de Cristo, como pensava o santo Bispo de Milão. Donde as suas reflexões: "O início da obra da medicina divina no sábado significa que a nova criação começou no ponto em que a antiga cessou. . . E com razão Cristo começou no sábado, para que Ele se mostrasse o Criador que coordena as suas obras, e para que prosseguisse o trabalho que já iniciara... Portanto, começa a pôr mãos à obra no ponto em que cessara" (Lc. 4:58) .


24) "Como Moisés apresentara em sete dias a criação do universo material, assim João fez questão , muito conscientemente (a quanto nos parece) , de apresentar também em uma semana a introdução da nova criação no mundo… Entre o solene testemunho que João Batista profere perante os delegados judeus . . e a primeira manifestação pública desse Divino Transformador, ou seja, a mudança simbólica da água em vinho nas bodas de Caná, calcula-se bem e verificar-se-á que decorrem exatamente sete dias. A escolha desses dois termos… para introduzir a narrativa é evidentemente ditada por razões simbolistas: a segunda criação, a da Graça, corresponde à da Natureza, e aparece claramente como autêntica criação" (Allo, L'Evangile spirituel de Saint Jean 75.s). A mesma interpretação simbolista dos sete mencionados dias é aceita e ainda aprofundada por M.-E. Boismard em “Du Baptême à Cana”, Paris 1956, 14s.


25) Tem-se aqui Redenção (do Novo Testamento) confrontada com redenção (do Antigo Testamento).


26) A tradução "habitou" sugerida pela Vulgata latina é muito pálida.


27) Sabe-se que esta intenção didática já se manifesta nos sinóticos; é, porém, muito mais marcante em São João.


28) Tal era a posição de A. Loisy, para quem o quarto Evangelho não passava de "um teorema teológico que dificilmente conserva as aparências de história". Os chamados "modernistas" julgam que, fugindo à trama concreta dos acontecimentos, o quarto Evangelista apenas elaborou figuras típicas, representativas de diversas classes de indivíduos; assim Natanael simbolizaria aqueles que procuram o Cristo; Nicodemos, aqueles que duvidam; a Samaritana, o povo característico da Samaria, etc.


29) Um dos primeiros líderes do antigo Gnosticismo, foi considerado um heresiarca pelos primeiros cristãos devido a seus ensinamentos sobre a pessoa de Jesus Cristo e por suas interpretações acerca do cristianismo. Ao contrário das primeiras comunidades cristãs, a escola gnóstica de cerinto seguia a lei judaica, usava o Evangelho dos Hebreus (provavelmente composto por volta do século II), negava que o Deus supremo tivesse criado o mundo físico e negava a divindade de Jesus. Para Cerinto, o “espírito de Cristo" veio a Jesus no momento do batismo e o guiou por todo o seu ministério, abandonando-o momentos antes de sua crucificação.


30) Tal proposição estava presente na obra e no pensamento de Martinez de Pasqually, pensamento esse que teve que ser corrigido por Willermoz e Saint Martin a fim de se encaixar em uma perspectiva cristã real e saudável (não herética);


31) Assim a frase: "E o Verbo se fez carne " (1:14) é o remate longamente visado pelas sentenças anteriores do prólogo.


32) De resto, também nos sinóticos (embora com menor frequência) Cristo emprega locuções figuradas, que os ouvintes por vezes não entendem devidamente.


33) Na tabela anexa são indicados o s textos paralelos e intercalares de São Lucas, a fim de se perceber melhor a correspondência entre São João e os sinóticos.



Fontes:


- Pe. Ernest-Bernard Allo: “L’evangile Spirituel de Saint Jean, Suivi de le Regne de Dieu et le Monde”.

- M.-E. Boismard: “Du Baptême à Cana”.

- Bettencourt, Estevão - OSB: "Para Entender o Velho Testamento".

- Bettencourt, Estevão - OSB: "Para Entender o Novo Testamento".

- Escola Mater Eclessia: PARÁBOLAS E PÁGINAS DIFÍCEIS DO EVANGELHO;

- Escola Mater Eclessia: INICIAÇÃO TEOLÓGICA;

- Escola Mater Eclessia: NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA);


I.C.J.M.S.

Que Nossa Ordem Prospere !!!










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