O Caminho de Volta
- Primeiro Discípulo
- há 1 dia
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Desde as origens mais remotas da experiência humana, revela-se no homem uma profunda inquietação, uma sede que nada na realidade sensível consegue saciar. Tal sede é, nada mais nada menos, que a percepção de sua origem divina e de seu fim último, que é Deus. Como dizia Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I,1). Não se trata de um sentimento vago, mas de uma realidade ontológica: o homem, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26), traz em si uma marca indelével da transcendência, e por isso tende naturalmente a retornar à fonte de seu ser.
A teologia cristã, desde os tempos patrísticos, viu nesse impulso interior o eco da condição adâmica antes da queda, quando o homem, em estado de justiça original, vivia em harmonia com Deus. São Gregório de Nissa ensina que a verdadeira vida espiritual consiste numa constante ascensão da alma rumo ao Bem absoluto, que jamais se esgota: “A perfeição consiste em não se deter jamais no caminho para o bem” (Homilias sobre o Cântico dos Cânticos). Nessa marcha contínua, o desejo se purifica e se ordena, iluminado pela fé e sustentado pela graça.
Contudo, é necessário que esse desejo — esse desiderium que os antigos identificavam como uma nostalgia do céu — seja esclarecido pela razão e disciplinado pela revelação. A tradição escolástica, particularmente em São Tomás de Aquino, advertia que todo ato humano deve tender a um fim verdadeiro, e que o sumo bem do homem é Deus mesmo. “O fim último do homem só pode ser um bem que seja perfeito e universal, e isso só se encontra em Deus” (Suma Teológica, I-II, q. 1, a. 8). Separado desse fim, o desejo degenera em dispersão, orgulho ou curiosidade vã — o que já era denunciado por Santo Agostinho e reiterado por São Bernardo de Claraval, ao ensinar que “a curiosidade é a luxúria dos olhos”.
É neste horizonte que se insere a proposta da Ordem Retificada. Sua via iniciática, longe de constituir uma religião paralela, apresenta-se como instrumento pedagógico, orientando o homem de desejo a reencontrar, por meio de símbolos, ritos e reflexões (suas máximas), as verdades divinas que foram obscurecidas pelo pecado. Sua pedagogia — à semelhança dos métodos catequéticos da Igreja antiga — é gradual, respeitando a liberdade do buscador e levando-o a confrontar-se com a Verdade que o interpela do mais íntimo de seu ser. Como ensinou Santo Irineu: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem consiste na visão de Deus” (Contra as Heresias, IV, 20,7).
Alguns, porém, incapazes de penetrar no mistério do coração humano e alheios à sede mais profunda que nele habita, zombam da proposta do Rito Retificado, acusando-o de sectarismo ou insinuando nele armadilhas dogmáticas. Outros, não menos levianos, recorrem a trocadilhos infelizes com a palavra "religião", revelando mais o vazio de sua compreensão do que qualquer intenção crítica legítima — razão pela qual nem vale repetir aqui tais impropriedades. Longe de qualquer análise séria ou busca autêntica pela verdade, esses homens se entregam ao espírito da zombaria e exemplificam aquilo que São Paulo denunciava ao afirmar que “os homens ímpios zombam da piedade” (cf. 2Tm 3,1-5). A tradição espiritual cristã reconhece nesse escárnio um traço do espírito das trevas: o deboche que tenta desacreditar os instrumentos da graça, ridicularizando aquilo que fala à alma e à vocação mais íntima do ser humano. Zombar do coração que busca a Deus é zombar da própria inquietação que o Criador nele imprimiu — e isto, em última instância, é negar a dignidade espiritual do homem.
Jean-Baptiste Willermoz foi claro ao ensinar que a religião — a verdadeira, fundada na Revelação e sustentada pelos Sacramentos — é a primeira obrigação do homem. A via iniciática da Ordem Retificada não substitui, portanto, a religião, nem pretende oferecer salvação por outro caminho. Ao contrário, ela se propõe como um instrumento auxiliar, um meio de despertar e fortalecer no homem as virtudes necessárias para que ele persevere na fé, na esperança e na caridade — as mesmas virtudes que, segundo São Paulo, conduzem ao Reino dos Céus (cf. 1Cor 13,13). Como tal, a via simbólica e iniciática pode dispor a alma para os auxílios da graça, exercitando a vigilância interior, a humildade, a retidão de consciência e a confiança filial em Deus.
Assim, a Ordem Retificada, em sua pedagogia velada porém cristã, não se opõe à Igreja nem à sua economia sacramental. Pelo contrário, orienta o buscador para que se reconheça necessitado da graça, da Revelação, da autoridade legítima e dos meios ordinários da salvação. Como ensina São Leão Magno: “O que era visível em nosso Redentor passou para os sacramentos” (Sermão 74), e é por meio deles que o homem alcança o que a iniciação apenas pode sugerir: a real comunhão com Deus.
Em suma, a via iniciática do Rito Retificado não é um fim em si mesma. Ela é uma ferramenta — valiosa, sim, mas secundária — que serve para recordar e reavivar no cristão o compromisso com sua vocação batismal, com o Evangelho e com a vida de santidade, sustentada pela graça divina e alimentada nos sacramentos. Desprezar isso por zombaria ou ignorância é tornar-se aliado da confusão e da tibieza espiritual, que são sempre obstáculos à verdade e ao bem.
Convidamos nossos leitores a mais uma visita a “Conversaciones en el claustro: sobre el Régimen Escocés Rectificado y la masonería cristiana”. Alguns poderão dizer que estamos insistindo demasiadamente nos textos de Ramón Martí Blanco e Eduardo R. Calley; contudo, fazemos isso por considerarmos essencial, para o maçom retificado no Brasil, o contato com outras fontes de pensamento que, em muitos casos, não têm sido suficientemente divulgadas ou aprofundadas em nosso meio — que, infelizmente, se encontra repleto de fontes duvidosas, distorcidas ou ainda marcadas por um sincretismo superficial, incapaz de captar a profundidade espiritual, cristológica e soteriológica da via proposta pelo Rito Escocês Retificado. É precisamente para romper com essa mediocridade e favorecer um reencontro mais autêntico com as raízes do Regime Retificado que apresentamos, a seguir, mais um trecho de tão valiosa obra.
Vamos a ele.
O Caminho de Volta
Interlocutor 1: Querido irmão, suas reflexões me trazem à memória um discurso do Muito Rev. Cav. Eques ab Orientis Lucis, que expressou que a primeira e principal qualidade para entrar na Ordem é ser um «homem de desejo»; desejo, do latim desiderium, significa caído do céu, da estrela, e se aplica ao homem que arde em desejos de voltar a ela. Devemos, portanto, vigiar e admitir em nossas fileiras apenas homens de desejo. Pode-se compreender isso como o fervoroso anseio de um retorno ao Pai.
Poderia me ilustrar sobre essa doutrina? Qual é o caminho que nos conduz ao Pai, segundo a doutrina Retificada? É esta a Via Iniciática que a Ordem nos propõe? E se for assim, o que nos diferencia da Religião?
Interlocutor 2: De fato, o «homem de desejo» é aquele que sente falta de uma parte de si mesmo e a busca intensamente como uma urgência vital, sem, por vezes, ter uma noção clara do que está buscando. Nesse sentido, a Ordem Retificada tenta ajudá-lo da maneira que sabe, por meio da metodologia pedagógica que lhe é própria: sugerindo, apresentando ao candidato certos elementos de reflexão que o ajudem a extrair suas próprias conclusões; orientando-o, mas deixando que ele mesmo descubra. Esse «desejo» faz do homem o buscador a que nossos rituais se referem como «o homem que busca». Isso é confirmado pela Instrução moral do grau de Aprendiz: «Nesse estado de escuridão fostes conduzidos à Loja, fostes anunciados nela por três golpes como “o homem que busca”, e esses três golpes vos proporcionaram a entrada».
Essa busca, no entanto, deve ser orientada, pois buscar sem saber para onde se vai só leva a se perder: «não é raro ver homens desejar, buscar e perseverar em seus desejos. Muitas vezes, apenas a curiosidade pode ser o motivo: todos os homens querem saber e conhecer, e a maioria ilude-se sobre os motivos de suas buscas; vangloriam-se até de saber mais que aqueles cujo socorro lhes seria necessário», como continuam dizendo nossos rituais.
Essa busca, cuja sede nenhuma água pode apagar nem cuja fome nenhum alimento pode saciar, a Ordem tenta orientar para Deus, fazendo o candidato entender na cerimônia de Iniciação que esse trabalho não pode ser feito às cegas, pois ele se perderia na escuridão, mas deve deixar-se guiar por alguém, e que todo aquele que pede essa ajuda com fé e pureza de coração a recebe: «Mas não poderíeis fazê-los [referindo-se a viagens anteriores] sem um guia seguro e fiel para dirigir vossos passos: esse guia vos foi dado, jamais vos abandonará se não o rejeitardes. O Segundo Vigilante foi encarregado de contar-vos vividamente suas funções durante vossas viagens». Assim, exige-se do candidato confiança na Ordem, e aqui voltamos à importância fundamental de que a Ordem Maçônica esteja inspirada, para que o candidato nunca se sinta enganado, em verdades de ordem superior — como dissemos anteriormente —, e que melhores verdades de ordem superior que as reveladas no Livro sagrado para os cristãos, que é o Evangelho.
A busca a que nos referimos, seguindo a tradição cristã, consiste em aprofundar-se em si mesmo em busca daquela centelha divina que todos carregamos ao nascer, e que nos lembra a grandeza da condição do homem antes da Queda — que conhecemos como pecado original —, e que fazia com que o homem participasse da ordem divina e estivesse frente a frente com seu Criador, sem sentir vergonha por isso. Há nisso uma doutrina — a doutrina da Reintegração — que é própria da Ordem Retificada e que nossos fundadores, com Jean-Baptiste Willermoz à frente, elaboraram com uma metodologia sábia fundamentada na religião cristã, enriquecida pelo pensamento dos principais Padres da Igreja, que progressivamente nos leva a essa tomada de consciência, e que conduz por um caminho tendo o homem como ponto de partida para levá-lo de volta à sua condição primeira.
No entanto, a Ordem Retificada não pode alcançar esse objetivo sozinha, pois está escrito que só se pode chegar ao Pai por mediação do Filho, e como a Maçonaria não é uma religião, todo maçom Retificado precisa, como todo cristão, dos Sacramentos e da via sacramental administrada unicamente pela Igreja, para alcançar a Salvação prometida pela Lei da Graça. Dessa forma, a Via Iniciática que a Ordem Retificada nos propõe nos induz, conduz e constitui para alguns uma poderosa ferramenta nesse caminho de retorno ao Pai de que me falas, abrindo nosso intelecto às verdades que envolvem o mistério divino, mas é somente uma ajuda — poderosa, se quiser —, porém apenas uma ajuda que não serviria para nada se não houver fé em Cristo e em sua Salvação prometida. Daí a exigência para todo candidato de sua condição de cristão, e como consequência da fé em Cristo, sem a qual a Iniciação proposta seria inútil.
I.C.J.M.S.
Que a Ordem Prospere!!!
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