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LIBERTATEM LAPIS

Do papel da Virtude ou a “Ciência do bem” Jean-Marc Vivenza

Atualizado: 16 de out. de 2020


Do artigo “A Ciência Iniciática do Homem” de setembro de 2010


É sem sombra de dúvida que para a ciência dita do “bem” é essencial à virtude, sobretudo porque como faríamos o bem sem conhecê-la? É uma razão que podemos dar a favor do princípio de Platão, porém não basta para justifica-lo completamente, já que Platão não disse apenas que o conhecimento é indispensável à virtude, mas que é a virtude em si mesma.


O problema, delicado, é que conhecer o bem não é suficiente, é de suma importância deseja-lo. E quiçá, não apenas deseja-lo genericamente, e sim esforçar-se em cumpri-lo; e é este esforço o que se pode considerar como a fonte da ética humana: “Video meliora proboque, deteriora sequor” (vejo e aprovo o melhor, faço o pior) disse a Medeia de Ovídio; e Racine, traduzindo São Paulo, escreveu também: “Não faço o bem que amo; faço o mal que aborreço” (Racine, Cântico Espiritual, Hino do Breviário Romano, A paisagem o passeio de Port-Royal-des Champs, Gallimard, 1999). Assim podemos dizer, de maneira genérica, que se em todos os homens ha uma parte negativa que procede da ignorância, também ha outra que surge do desejo de lutar contra as “debilidades da vontade” e “iluminar as trevas da ignorância”. Estes são os dois grandes princípios da via iniciática que; então, e somente então, poderão realmente ser um “caminho de conhecimento e de espiritualidade”.


A visão do caminhar virtuoso (“Somente a virtude devolve ao homem a Luz” - Ritual do Grau de Aprendiz do Rito Escocês Retificado) parecia aos estoicos uma renuncia aos desejos vãos, um desapego e uma tranquilidade de espírito. Para o sábio estoico, não é suficiente desapegar-se das paixões, ha que separar-se da fonte das paixões, das influencias externas que semeiam a confusão no coração do homem. O espírito deve resignar-se a solidão. Porém, seria isso o suficiente? Em absoluto, posto que a fonte das paixões resida na sensibilidade. Haverá que esgota-la descartando a todo custo os sentimentos. Mas por acaso seria a inteligência, em si mesma, então o principio de mil ilusões e desordens? Através da duvida, do orgulho, etc... Arranquemos, pois, esta raiz enferma pede e exige o sábio. E o que restara disto? Apenas Eu e minha vontade. Vã ilusão! Enquanto subsistir o Eu, o amor próprio segue vivendo e prosperando nele, e seguirá tomando as formas mais mutáveis e menos reconhecíveis ao invés de morrer em si mesmo. Angustiosa e difícil posição; insustentável quiçá, morrer em si mesmo, eis aqui o que é realmente sábio para o discípulo de Epicteto, é a única sabedoria possível. A sabedoria estoica parece querer suprimir os instrumentos do nascente ilusório, destruir a atividade discriminatória em si mesmo e fazer do homem, antes do tempo, o que os mestres orientais denominam “uma árvore morta”.


Joseph de Maistre nos trás um pouco mais de luz dizendo: “a Redenção, estando acabada, não mudou milagrosamente a natureza das coisas, é verdade que nos restituem o direito de retomar posse da herança perdida, porém não nos exime das condições necessárias para reconquista-la”. E, destas condições, a mais importante e que compromete toda a existência do Buscador é a morte do velho homem, a qual ocorre quando o homem aceita ver-se tal como é.


Em uma belíssima carta a Willermoz, Saint-Martin nos da o perfeito exemplo das disposições que devem presidir em nossos corações se queremos avançar séria e autenticamente no caminho espiritual: “Lhe reitero minhas súplicas para que me ajude a apartar de mim o que pode me fazer dano. Ilumine-me sobre os defeitos de meu coração, sobre os erros de meu espírito e de minhas obras. Amo o Bem, amo a Verdade, Deus o sabe e para meu próprio interesse não duvidarei nunca nem um minuto em deixar de lado tudo o que me indiqueis como prejudicial para a atração que sinto pela Luz e pela Virtude. (...) Trace-me meu caminho, pronuncie minha sentença, sofrerei meu juízo sem murmurar” (29 de abril de 1785).


Esta magnífica disposição da alma, expressada por um indiscutível mestre do espírito, é capaz de operar uma abertura através da criatura, de modo que a luz se infiltre na alma: “Quem é um homem essencial?”, perguntava a este respeito Jacob Boehme (1575-1624); “é um homem no qual o espírito abriu uma brecha”, contestava ele mesmo. Lemos, a este respeito, na bonita passagem traduzida por Louis-Claude de Saint-Martin do livro “A Aurora Nascente”, primeira das obras escritas pelo visionário de Görlitz, na qual nos explica a passagem da Luz em seu espírito: “porém quando nesta aflição, uma ardente e violenta impetuosidade arrastou até Deus meu espírito, sobre Quem tinha pouco ou nada de conhecimento, e meu coração inteiro se encheu de carinho, todos os meus pensamentos e todas as minhas vontades se reuniram com a intenção de exprimir sem trégua o amor e a misericórdia de Deus e não soltar até que me bendiga, quero dizer, me iluminara por seu Espírito Santo, de modo que pude compreender sua vontade e livrar-me de meu tormento, então o Espírito abriu sua brecha. (...) A raiz deu grandes assaltos em meu espírito, penetrou através de portas infernais até a geração mais interna da divindade, e ali fui abraçado pelo amor, como um esposo abraça sua querida esposa. Quanto a esta espécie de triunfo no espírito, nem o posso descrever nem pronunciar; isto não pode senão figurar como se a vida estivera engendrada em meio à morte; e isso se compara com a ressurreição dos mortos. Nesta luz meu espírito viu em seguida através de todas as coisas e reconheceu em todas as criaturas, nas plantas e na erva, o que Deus é, e como É, e o que é sua vontade. Também, neste instante, nessa luz, minha vontade foi levada por um grande impulso a descrever o Ser de Deus” (A Aurora Nascente, XIX; 10-13).


Esta abertura, esta brecha efetuada em seu espírito, Boehme a olha como a obra do Senhor, o principio do processo de renovação completa do ser, o começo do novo nascimento sem o qual não existe vida espiritual real. Se Boehme está de acordo com a ideia da plena eficácia da redenção obtida pelos pecadores, de uma vez por todas, durante o sacrifício sangrento e único do Cristo na Cruz, para a inteira libertação dos homens das consequências de seus pecados e do dom gratuito da Salvação para aqueles que aceitem Jesus como Salvador, considera, em troca, que esta graça sobrenatural, para ser eficaz, deve ser recebida imperativamente por um homem transformado, regenerado. O estado de morte espiritual no qual se encontram os homens frente a Deus Santo estabelece o efeito de tal separação, tal distancia infranqueável entre os seres e a divindade, entre as miseráveis criaturas culpadas e o Deus Santo, que não é suficiente saber-se salvo pelo efeito de uma passiva recepção da potencia redentora do Cristo, ha que renascer necessariamente consciente e voluntariamente para uma nova vida.


É certo que o perdão dos pecados foi conseguido perfeitamente em Gólgota, pois o Senhor Jesus se entregou em pura, muito humilde e adorável vítima propiciatória, “o Cristo morreu por nossos pecados” (I Coríntios 15:3). E a este respeito, a obra de salvação já não está por vir, já se realizou. Porém resta ao homem aceitar deixar-se engendrar por “outra ordem de coisas”, segundo a ordem sublime e inefável do Espírito.

É importante, pois, para cada um, e este pode ser o sentido da via iniciática, passar do caminho da redenção ao da iluminação, digo, concreta e realmente, abrir-se ao fogo transformador, regenerador e rompedor do Espírito em nós.


Aceitar ser “perfurado” pelo Espírito, aceitar passar pela via da iluminação, deixar-se atravessar pelo Espírito, e assim comprometer verdadeiramente todo o seu ser em direção a Luz, é ousar a “des-criação” segundo a bela expressão de Simone Weil (1900-1943) dos limites que obstaculizam a recepção das luzes do Ser, posto que, para retomar a palavra de Nicolás Berdiaev (1874-1948), “se o homem espera o nascimento de Deus nele, Deus espera o nascimento nele do homem. E é desta profundidade, de onde se deve projetar o problema da criação” (Autobiografia, 1968), problema extraordinariamente misterioso da criação verdadeira que é o da geração espiritual.


I.C.J.M.S.

Que Nossa Ordem Prospere !!!

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