Nota dos responsáveis pelo Blog: O texto reproduzido abaixo é de autoria do Irmão Jean-Marc Vivenza, pesquisador extremamente sério, que muito nos inspira, e cujo pensamento reproduzimos aqui já em outras ocasiões. Seu conteúdo sofreu alterações em algumas partes a fim de adequá-lo ao português falado no Brasil, no entanto tais mudanças não alteram em nada seu sentido. Outras partes foram omitidas por não as considerarmos de acordo com a sã prática da espiritualidade (o que, quando e qual a razão dessas omissões estarão explicados em nota no corpo do próprio artigo). Observamos ainda que aquilo que o texto expressa sobre o Regime Retificado e a Doutrina Cohen não está em exata conformidade com o pensamento dos irmãos dedicados ao Blog, mas está sim, muito próximo das conclusões que chegamos no decorrer de nossas muitas pesquisas. Vamos então juntos, mais uma vez, buscar a compreensão sobre "o quanto, afinal de contas, teria Alice descido na toca do coelho”.
== Introdução ==
Duas atitudes equivalentes, porém excludentes entre si, se entrecruzam regularmente quando se trata de analisar a relação de Martinez de Pasqually e de Jean-Baptiste Willermoz com o Rito Escocês Retificado. A primeira, se dedica a não reconhecer quase nenhuma relação entre o sistema maçônico construído no século XVIII em Lyon por Willermoz e os ensinamentos transmitidos por Martinez de Pasqually à seus discípulos; já a segunda, considera o Regime Escocês Retificado como uma reprodução debilitada da Ordem dos Cavaleiros Maçons Elus Cohen do Universo (debilitada por estar amputada de sua parte teúrgica). Vamos olhar a questão mais de perto:
== Um Iniciado Lionês: Jean-Baptiste Willermoz ==
Jean-Baptiste Willermoz nasceu em 1730 e faleceu aos 94 anos de idade no ano de 1824. Foi iniciado maçom no ano de 1752 e no ano seguinte fundou a loja “A Perfeita Amizade” . Com a aprovação do Conde de Clermont, no ano de 1760, funda a “Loja dos Grandes Mestres Regulares de Lyon” da qual se tornou arquivista. Ocupar esse cargo concedeu a Jean-Baptiste Willermoz a oportunidade de estabelecer uma sólida relação epistolar com uma grande quantidade de maçons de diversos graus e em especial, no ano de 1761, com Antoine Meunier de Précourt, então Venerável Mestre da Loja “São João dos Amigos Perfeitos” (“Saint-Jean des Parfaits Amis”) no leste de Metz, que lhe forneceria diversos rituais, entre os quais estava o de Cavaleiro Kadosh, o qual permitiu que Willermoz se aproximasse pela primeira vez, não sem certa confusão, da lenda dos Templários.
Juntamente com seu irmão, Pierre-Jacques Willermoz, ele forma em Lyon um “Capítulo dos Cavaleiros da Águia Negra”, um pequeno círculo fechado dedicado ao estudo de diversos catecismos, rituais e instruções sobre os graus praticados à época. Nessa ocasião Willermoz estava fortemente convencido de que a maçonaria estava imersa em uma forte confusão que a desfigurava completamente, todavia também acreditava que, não obstante isso, em seu interior repousavam os conhecimentos secretos essenciais que ele ansiava descobrir.
No entanto os anos se passavam e Jean-Baptiste Willermoz, já com cerca de 40 anos de idade, se encontrava desiludido por não conseguir achar nada de concreto, no horizonte de conhecimentos que se lhe apresentava a frente, acerca da natureza da iniciação.
De fato, enquanto aspirava o “verdadeiro conhecimento”, acabou por ter um encontro com um personagem que mudaria completamente sua compreensão daquilo que é a iniciação maçônica e do que ela representa; o que daria uma nova perspectiva à sua orientação espiritual. Tal personagem, como o leitor certamente já sabe, era Dom Martinez de Pasqually.
Naquela época a “Ordem dos Cavaleiros Maçons Elus Cohen do Universo”, da qual Martinez de Pasqually era o Grande Soberano, acabara de instalar, durante o equinócio de primavera no Oriente de Versalhes (ano de 1767), a sua instância máxima, isto é, seu “Tribunal Soberano”.
== O Decisivo Encontro ==
Por ocasião de uma viagem a Paris [Nota do Blog: para onde havia ido solicitar a Cruz de São Luís para seus irmãos cadetes domiciliados em Santo Domingo] por intermédio de Jean-Jacques Bacon de la Chevalerie (1731-1821), então Deputado da Loja dos Mestres Regulares de Lyon ante a Grande Loja da França, Willermoz tomou conhecimento da Ordem liderada por Martinez de Pasqually, de seus supostos poderes espirituais e da suprema sabedoria (repleta de conhecimentos fora do comum) que lhe eram atribuídos.
Curioso, porém circunspecto, Jean-Baptiste Willermoz escreve para seu irmão Pierre-Jacques Willermoz narrando a este, em uma das cartas que a história felizmente conservou, que tinha sobre tal assunto “uma reserva prudente”. Essa reserva porém não o impediu de viajar de Paris a Versalhes - em um dia qualquer de Abril - para bater às portas do Templo Cohen solicitando ser recebido como membro da Ordem. Na noite de sua recepção, para surpresa de Willermoz, foi Martinez de Pasqually em pessoa que oficiou a cerimônia. Willermoz ficou a tal ponto impressionado pelo que viveu que, cinquenta anos mais tarde (em 1821), em carta a Jean de Turckheim (1749-1828), Eques a Flumine, demonstrou estar intacta a memória daquilo que havia vivenciado e descoberto.
A razão do caráter decisivo desse encontro foi explicado em carta a Charles de Hesse-Cassel (1744-1836), Eques a Cedro Libani, no ano de 1781 (sete anos após a morte de Martinez de Pasqually). Falando sobre a importância de Martinez de Pasqually e o motivo de seu apego para com ele, dizia Willermoz:
“Martinez me fez avançar rapidamente, inicialmente obtive os seis primeiros Graus [Mestre Elu, Aprendiz Cohen, Companheiro Cohen, Mestre Cohen, Grande Arquiteto, Cavaleiro do Oriente e Comendador do Oriente]; um ano depois, empreendi uma viagem com a intenção de conseguir o sétimo e último [Réau+Croix] (sic), que outorga o título e o caráter de chefe na Ordem. Aquele de quem os recebi se dizia um dos Sete Chefes Soberanos Universais da Ordem e demonstrou seus conhecimentos por meio de feitos. Seguindo-o, recebi o poder de conferir os graus inferiores. No entanto fiquei sem fazer uso dessa prerrogativa por alguns anos; tempo que utilizei para me instruir e me fortalecer tanto quanto me permitiam as obrigações civis. Somente em 1772 ocasião em que recebi como irmão o meu médico e depois os irmãos Paganucci e Périsse de Luc, homens que sua alteza viu no quadro dos Grande Professos. Esses três converteram-se em meus confidentes com algumas questões que tive a liberdade de confiar-lhes.”
[Nota do Blog: Curiosamente, no mesmo ano de 1821, Willermoz escreve carta a Jean de Turckheim esclarecendo alguns pontos sobre a pessoa de Martinez de Pasqually (o que pode ser visto em um de nossos posts intitulado: “Dom Martinez de Pasqually Por Jean Baptiste Willermoz”); Isso nos sugere que, naquele ano, algum acontecimento - desconhecido para nós até o momento - levou os irmãos da Ordem a solicitar de nosso Pai Fundador maiores informações sobre o Chefe dos Elus Cohen].
Em outra carta, ainda a Charles de Hesse, se encontra uma informação que, podemos dizer, é de prima importância para o nosso tema:
“Os três primeiros graus [Cohen] instruem o recipiendário acerca da natureza divina, espiritual, humana e corporal; é precisamente esta instrução que dá forma a base do ensinamento dos Grande Professos. Sua Alteza Sereníssima poderá reconhecê-la pela leitura. Os graus posteriores [Grande Arquiteto, Cavaleiro do Oriente e Comendador do Oriente] ensinam a teoria cerimonial preparatória para a prática exclusivamente reservada ao sétimo e último grau [Réau+Croix]. Aqueles que atingem esse grau, cujo número é muito pequeno, estão sujeitos a trabalhos e operações particulares, que se fazem essencialmente em março e setembro. Os pratiquei com constância …”
Parece pois evidente, diante do que acabamos de ver e por declarações a Turckheim como: “Aí está, meu amigo, o que posso dizer de certo [...] deste extraordinário homem cujo igual jamais conheci" ; que Willermoz encontrou na Ordem dos Cavaleiros Maçons Elus Cohen do Universo e em seu amigo e instrutor, Martinez de Pasqually, muito daquilo o que ele havia esperado em matéria de iniciação; bem como a confirmação da justeza de algumas de suas expectativas a propósito dos mistérios que sobrevivem no seio da franco-maçonaria.
Seu apego e interesse pela doutrina e pelas práticas de Martinez de Pasqually se traduziriam em cinco anos de uma forte relação de amizade, por vezes delicada, mas sobretudo por uma correspondência assídua fundada no desejo permanente de aprofundar incessantemente os dados teóricos e operativos propostos pelos Élus Cohen.
== Willermoz, Um Discípulo Ativo Porém Inquieto ==
Willermoz abre um templo em Lyon, uma loja que trabalha nos rituais Cohen, destinada a receber os irmãos mais capacitados dos graus superiores da Ordem. A teurgia cerimonial transmitida por Pasqually, que trata sobre a invocação dos nomes angélicos, se converteu então na atividade secreta de “La Bienfaisance” (A Beneficência). Para praticar corretamente os rituais Cohen, Willermoz se dirigia a Pasqually com muita frequência; este lhe dava então conselhos detalhados (por meio de cartas) e muito precisos; eis por exemplo o que disse a Willermoz algum tempo antes de sua recepção:
“Recomendo lentidão a seus trabalhos maçônicos para evitar as surpresas das falsas aparências. Que minha experiência lhe sirva de lição; assegure a todos os seus discípulos sobre meu sincero afeto. Não ignoro nenhum dos esforços que tens feito para meu benefício particular e para benefício da Ordem. Zele pelo seu poder e autoridade querido mestre, não admita, dentro do que te for possível, no conhecimento de nossos mistérios aqueles que não se conheça deles o verdadeiro zelo, como o exigem nossos estatutos gerais; este é o único meio de esconder as sublimes ciências que se encerram em nossa Ordem, ocultas sob o véu da Maçonaria.
Não imagine que eu suspeite de sua exatidão ou de sua severa discrição, só recomendo a você aquilo que exorto a todos os meus fiéis filhos espirituais, que chamo em meu coração de ‘Caros Amigos’ e que chamo, em público, com o carinhoso nome de ‘irmãos’.
Você é o filho querido e amado daquele que o quer e o amará até o final de seus dias, e você deve acreditar em mim da vida até a morte (sic)”.
No entanto, enquanto Martinez de Pasqually sustentava a eficácia de seu método como “meio de se chegar a Deus, ou ao menos a provas sensíveis de sua existência e da existência do mundo imaterial dos espíritos (...) concedendo ao iniciado a segurança de sua salvação”, os trabalhos de teurgia traziam a Willermoz, que nunca era favorecido pela “La Chose” (A Coisa) mais inquietações do que luzes, suscitando-lhe muitas perguntas e inclusive dúvidas muito sérias. É necessário dizer que a desilusão com a prática das operações é fácil de se compreender, Martinez de Pasqually insistira em suas cartas sobre o valor excepcional de seu método e o êxito garantido dos mesmos: “O homem só tem que querer, terá poder e potência”; Os Reaux-Croix, segundo Pasqually, se converteriam então em “homens-deuses criados à semelhança de Deus e Deus os inscreveria no registro das ciências que se abrem aos homens de desejo”.
Para entender melhor a origem destas inquietações, apontamos que já no momento de sua recepção a Réau+Croix, oficiada por Jean-Jacques Bacon de la Chevalerie, começa a transparecer a desorganização que reinava na Ordem. No dia 2 de maio de 1768, Pasqually realmente havia enviado previa permissão para que Willermoz fosse recebido no ultimo grau mas nada no que tange a cerimônia e a maneira de executa-la estava pronto. Pasqually no entanto enviara uma pequena carta a Bacon de la Chevalerie onde Indicava a forma como deveria oficiar a cerimonia. [NOTA do Blog: não reproduziremos aqui essa “forma de proceder” orientada por Pasqually por envolver sacrifício de animais, o que consideramos grosseiro, bárbaro e inaceitável mesmo no século XVIII.]
== As Desilusões de Jean-Baptiste Willermoz ==
A cerimônia se realizou nos dias 11,12 e 13 de maio de 1768. Willermoz recebeu nela um escapulário e um talismã idêntico ao dos Réau-Croix, também durante a recepção se cumpriu a determinação de Pasqually a Bacon de la Chevalerie: “Não esqueça de fazer com que beba do cálice na cerimônia depois da recepção e que coma o pão místico, “cimentaire” (sic) ao recém recebido Réau-Croix…”
No entanto, ao contrário do que o fizeram crer que aconteceria, nenhum fenômeno sobrenatural veio dar testemunho do sucesso da cerimônia. Mais grave ainda, as operações de equinócio, as primeiras que Willermoz poderia finalmente participar, fixadas nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 1768, já nas quais deveria receber uma ordenação simpática, foram pura e simplesmente postergadas por Martinez; que teria esquecido de enviar as orações e invocações a tempo, justificando-se mais tarde com explicações confusas, dizendo que seu criado havia enviado a correspondência para local errado, depois que um furacão havia destruído parte da propriedade de seu sogro …
Durante os anos seguintes as surpresas não terminaram. Willermoz se chocava ao ver Martinez modificar rituais, segundo as “novas intuições” que recebia nos períodos de equinócios, fazer promessas das quais se esquecia com a mesma velocidade que as tivera feito, falar interminavelmente sobre supostos problemas financeiros que vinha atravessando; até que, um dia, através de uma carta, nega auxílio espiritual a irmã do comerciante de Lyon - a Sra Provençal - que se encontrava muito adoentada (doença que a levaria a morte): “Ora; rogue aos céus pela ajuda necessária a sua irmã. Conseguirá tanto quanto eu nesse ponto, caso sua oração e intenção sejam puras e sinceras [...]”
Finalmente, como ponto culminante que reforçaria os temores que inspiravam Willermoz sobre o comportamento caprichoso de Martinez de Pasqually, uma desordem indescritível reinava na Ordem Cohen (Ordem que ambicionava no entanto reformar completamente a franco-maçonaria); os templos estavam quase que abandonados à própria sorte; sendo que nem o Tribunal Soberano de Paris nem o Substituto Universal, Jean-Jacques Bacon de la Chevalerie, possuíam os rituais completos da Ordem (inclusive os ritos dos primeiros graus).
Quando finalmente Willermoz decidiu questionar firmemente a Martinez de Pasqually sobre as razões de seus calotes (sic), Martinez se esquivou, surpreendo-o com o argumento utilizado para sua defesa: “Tenho que guardar secretamente o pouco que me transmitiram caritativamente, por medo de que me seja tomado para quitação.”
Em 1769, Willermoz volta a Paris para encontrar-se com Jean-Jacques Bacon de la Chevalerie, ocasião em que expressou a esse suas preocupações pessoais com seu amigo e mestre, bem como a preocupação com o bom caminhar da Ordem que ele estava a propagandear em Lyon.
Em 1771, Willermoz novamente procurou encontrar-se com Martinez que, após tentar evitar que esse encontro ocorresse, compareceu a reunião, embora não de bom grado. Nenhum resultado foi obtido.
Willermoz olhava com desconfiança para as correspondências que lhe chegavam propondo fantasiosos projetos de fundo supostamente caritativo; a mesma desconfiança que tinha por exemplo quanto ao luxuoso traje de “tafetá rústico com fundo branco e faixas de cetim rosa” que Willermoz escolhera para combinar com a tez “morena clara” da Senhora Pasqually, vestido suntuoso encomendado por Martinez que afirmara que o pagaria dentro dos “melhores prazos possíveis”, coisa que nunca ocorreria.
Em 1772 Martinez de Pasqually viaja a São Domingos, a fim de cobrar uma herança. Ele sabia que sua saída precipitada poderia provocar uma real desilusão em seus discípulos e escreveu para Willermoz, tentando tranquilizá-lo, afirmando que voltaria logo que fosse possível:
“Ainda que assuntos temporais me tenham obrigado a passar pela colônia, nunca perdi de vista a Coisa (La Chose). Eu sempre conduzo juntos o temporal e o espiritual; por meio disso, atrevo-me a dizer que tudo acabará bem; o Eterno conhece meus pontos de vista sobre um e sobre o outro, de modo que protege minha pessoa conservando-a na mais perfeita saúde, o que me dará a capacidade de resolver os assuntos de sucessão (herança) que aqui reivindico. Tão logo possa estarei de volta a França, para viver entre nossos filhos espirituais compensando-os do tempo que perderam (foram privados) da Coisa (La Chose)”.
Prosseguiu Martinez:
“Se for da vontade de Deus, espero terminar os assuntos temporais aos quais me dedico aqui até o final do próximo ano, ocasião em que me proponho a passar na França, salvo circunstâncias imprevistas. Farei esforços para visitar o seu Grande Oriente tanto quanto a Coisa (La Chose) o deseje e me confirme. Aqui, se teme pelo meu breve regresso. Estou esperando sua resposta para terminar minha rota marítima para desembarcar na França. Eu quero chegar a Bordeaux só depois de meu giro pela França."
No entanto Willermoz viu os meses passarem sem a prometida volta de Martinez de Pasqually. Enquanto isso, a Ordem Cohen continuava entregue a total desorganização; os rituais continuavam incompletos, as instruções inacabadas, faltavam catecismos e, sobretudo, ninguém demonstrava capacidade para substituir o mestre; conflitos perturbadores haviam surgido no topo da Ordem, principalmente com Bacon de la Chevalerie, Substituto Universal destituído no ano de 1772 em virtude de atitudes que Martinez considerara como indiscrições (fato que afetou o humor de Willermoz).
Porém, se a Ordem Cohen estava mergulhada em caos, por sua vez o estado da Franco-Maçonaria na França também não era nada bom, podemos dizer que era deplorável, consequência da desordem gerada pelo conflito em seus Graus Escoceses, que se reforçou por ocasião da morte do Conde de Clermont em 1771, sucedido por Louis Philippe, Duque de Chartres e de Orleans.
O Cavaleiro de Grainville resumiu muito bem a situação: “A Ordem, entregue a Dom Martinez de Pasqually não se consolidará jamais e, tampouco, se consolidará se for entregue a ambição ou ao destino. Não sei como afinal poderia consolidar-se e creio que nunca acontecerá. Talvez isso não seja um mal maior...”
Assim, para colocar de maneira clara, se por um lado Willermoz permanecia ligado a doutrina de Martinez de Pasqually e, de modo particular, não ocultava seu entusiasmo ou sua viva admiração pelo “Tratado de Reintegração dos Seres”, por outro lado, claramente, não nutria o mesmo sentimento em relação a Ordem Cohen.
== Dos Elus Cohen a Estrita Observância Templária ==
Willermoz decidiu em 18 de dezembro de 1772, com intuito de remediar a situação desconfortável ante a qual se encontrava e dado as responsabilidades que tinham para com seu irmãos de “La Beneficencia”, procurar uma organização a qual muitos de seus amigos falavam muito bem; escreveu então uma longa carta ao Barão Karl Gotthelf von Hund (1722-1776), Eques ab Ense, Grão Mestre da Estrita Observância Templária, organização que gozava de uma forte reputação de rigor e de ordem.
Sua carta chegou ao Barão Von Hund por intermédio do Barão de Landsperge da Loja “la Candeur” (A Candura) de Estrasburgo. Na carta, ele explicava detalhadamente sua “saga maçônica” e insistia “nas longas investigações as quais havia se dedicado para descobrir a essência do segredo maçônico”; concluia propondo uma aliança e pedia claramente que fosse estabelecido um vínculo entre “a Beneficência” (La Beneficencia) e a Estrita Observância.
A carta de Willermoz produziu efeito já que deu início a uma série de trocas de informações cada vez mais estreitas e calorosas; calor mantido e reforçado consideravelmente pelos esforços dos irmãos de Estrasburgo da loja “la Candeur”. Van Hund enviou então o Barão Georg August Von Weiller (1726-1775), Eques a Spica Aurea, a fim de instalar em setembro de 1773, em Estrasburgo, o diretório da província de Borgonha e depois, em julho de 1774, em Lyon o diretório da segunda província de Auvérnia.
No entanto, esses movimentos de Willermoz que demonstravam uma atividade maçônica direcionada aquilo que poderia se chamar de “mais clássico” e sua retomada de laços com Obediências consideradas “apócrifas” pelos Cohen, chegaram aos ouvidos de Martinez. Este ficou extremamente descontente com essa nova orientação, como dão testemunho os termos bastante duros de uma carta que ele enviou a seu discípulo:
“Não esconderei de você que o P[oderoso] M[estre] Caignet, assim como eu e todos os membros que compõem o G[rande] T[ribunal] S[oberano] de meu G[rande] O[riente], ficamos surpresos e mesmo assombrados quando vimos seu nome em um impresso que lida com a Nacional Loja da França [...]
A Ordem não mantém nenhum de seus membros pela força, ao contrário, garante-lhes sempre a liberdade porque, de outro modo, não teria nenhum mérito em fazer o bem em detrimento do mal [...] Escrevo uma longa carta de instrução sobre seu atraso na correspondência com a Coisa ao P[oderoso] M[estre] Saint-Martin para que leia em voz alta no centro da coluna do Oriente de seu templo, na presença de todos os irmãos; no caso o P[oderoso] M[estre] Saint-Martin não estar presente na ocasião da chegada dessa correspondência, ela será aberta e lida por você mesmo, na presença dos membros de seu templo”
Não se sabe se o pedido de penitência pública exigida por Martinez foi lido no templo de Lyon, o que é certo é que uma distância real se estabelecia cada vez mais entre Willermoz e a Ordem dos Cohen.
== As Lições de Lyon (1774 - 1776] ==
Ao alargamento da distância de natureza estrutural somou-se um reexame da doutrina em si mesma, reexame necessário para diluir certas ideias pouco ortodoxas de Martinez a uma forma de pensamento cristão mais clássico. Assim em setembro de 1773, Louis Claude de Saint-Martin chegou a Lyon e uniu ao pequeno círculo Cohen. O “Tratado de Reintegração dos Seres”, cujos extratos foram entregues até mesmo aos irmãos menos avançados, foi então lido e explicado detalhadamente (lembremos que o conhecimento do tratado inicialmente estava reservado apenas aos irmãos Réau+Croix). Esse fato de revelar o tratado mesmo aos irmãos menos avançados pode chocar alguns mas, como bem pontuou Robert Amadou, Jean-Baptiste Willermoz observando a retidão da intenção disse: “Esse relaxamento na disciplina é destacável mas não censurável, pois a intenção é reta e se relaciona com as circunstâncias”.
Saint-Martin elaborou, em colaboração com seu anfitrião, uma espécie de projeto de instrução dos irmãos que formavam o templo Cohen de Lyon. Adotou-se um plano a fim de organizar o programa de ensinamento, eles concordavam com um ritmo na razão de duas conferências por semana em dias previamente fixados. De modo muito conscientemente Willermoz, no princípio do ano de 1774, enviou a Martinez um “quadro geral” do “Grande Templo” e recebeu uma carta Porto Príncipe, datada de 24 de abril, assinada pelo Grande Soberano da Ordem, agradecendo pela informação.
As lições se iniciaram sob a direção de Saint-Martin, acompanhado por Willermoz e Jean-Jacques du Roy d’Hauterive, igualmente Réau-Croix. Alguns irmãos visitantes muitas vezes batiam as portas do Templo de Lyon. Entre eles Bacon de la Chevalerie, Chambérien Marc Revoire da loja “a Sinceridade” , os de Grenoble Joseph Prunelle de Lière (1740-1828), Josephus a Tribus Oculis, e André Amar (1755-1816), assim como, procedente de París, o Abade Rozier (1752-1816).
A primeira instrução ocorreu em uma sexta feira em 7 de janeiro de 1774 e tratou “sobre a criação do universo material-temporal e o número sete que a produziu - suas relações com o homem”. Essa sessão de instrução abriu uma sucessão de dezesseis outras que se entenderam até o dia 12 de setembro, distribuídas em quarenta e duas lições. Abordaram muitos pontos os quais convergiam à uma só pergunta: “Como, graças a ciência divina transmitida por Martinez, seria possível trabalhar na reconciliação do homem?”
A leitura das lições ensinadas por Saint-Martin, d’Hauterive e Jean-Baptiste Willermoz, são para nós prova incontestável do interesse e da força do conhecimento Cohen sobre Willermoz; ao mesmo tempo, o que não se deve subestimar, evidencia-se de forma muito nítida aquilo que diferencia o pensamento de Willermoz (assim como o de Saint-Martin e d'Hauterive) de Martinez, em pontos não maçantes, principalmente em dois pontos que classificamos sem dúvida alguma como maiores. Com efeito Willermoz, ajudado por Saint-Martin, exerceu o que se pode designar como uma espécie de “direito de inventário” ou “direito de herança” no que diz respeito ao legado doutrinal deixado por Martinez a seus discípulos… revisando, corrigindo e inclusive, em casos extremadamente mais significativos, rechaçando completamente as posturas do “taumaturgo de Bordeaux” no que tange a sua cristologia e sua concepção da Trindade.
Assim, Willermoz introduz nas “lições de Lyon” uma releitura dos ensinamentos de Martinez a luz das Verdades da Revelação, a fim de tornar a Doutrina da Reintegração de Pasqually compatível com a iniciação cristã que ele apoiava com todas as suas forças e que entendia que devia preservar e aperfeiçoar, segundo o desejo que secretamente mantinha e que até aquele momento não havia dividido com ninguém … desejo esse de reformar, ou mais precisamente retificar, a Estrita Observância Templária e a maçonaria de modo geral.
Então, desse modo, em uma espécie de seminário aberto e permanente, as reflexões dos Cohen de Lyon trataram sobre diversos pontos específicos sobre os ensinamentos martinezistas, com o fim de selecionar, aprofundar e desenvolver o que lhes fosse conveniente, alterar o que achavam que deveria ser alterado e rechaçar tudo aquilo que para eles não fosse aceitável.
Sobre isso, poderíamos dizer da relação que apareceu entre Martinez e Willermoz quase a mesma coisa que Robert Amadou falou sobre Martinez e Saint-Martin: “Saint-Martin conserva geralmente uma linha mais martinezista, mas a particulariza ordenando-a, segundo seu próprio talento, a forma verbal e a une a um cristianismo mais ortodoxo”.
== Originalidade do Regime Escocês Retificado ==
A essa altura já é possível compreender a razão pela qual, entre 25 de novembro e 10 de dezembro de 1778 na cidade de Lyon, Jean-Baptiste Willermoz vendo que a Ordem de Martinez de Pasqually não sobreviveria ao desaparecimento de seu Grão Mestre (o que ocorreu em setembro de 1774) dá a luz durante o Convento de Gálias a “Ordem dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa”; Ordem que retifica as estruturas e as perspectivas espirituais da Estrita Observância Templária para que a mesma possa vir a ser um depósito iniciático cujo valor ele considera muito maior. Nela, semeia inteligentemente, grau a grau, os diferentes elementos simbólicos particulares (números, cores, formas, baterias, sinais, disposições cosmológicas, etc) procedentes dos rituais Cohen, incrustando assim os ensinamentos de Martinez de Pasqually no seio da Ordem recentemente edificada, conhecida como Regime Escocês Retificado, conferindo assim, por essa providencial operação, um marco protetor para a Doutrina da Reintegração, marco que a Ordem Cohen não estava em posição de manter já que Willermoz não buscou conservá-la.
Mas estejamos atentos; se por um lado o Regime Escocês Retificado é o marco protetor da Doutrina da Reintegração, tal como desejou Jean-Baptiste Willermoz (especialmente em sua Classe não ostensível constituída pelos Cavaleiros Professos e Grande Professos), por outro lado distingue-se totalmente dela corrigindo seu entendimento sobre a Santíssima Trindade que passa a ocupar um lugar de central importância dentro da Ordem, convertendo-se em alvo de reverência e adoração; e passando a transmitir uma cristologia que insistirá na dupla natureza do Reparador dos Mundos (Nosso Senhor Jesus Cristo), afirmando reconhecer n’Ele o Messias, o Mestre, Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus.
A partir daqui podemos dizer, com segurança, que caso alguém queira conhecer verdadeiramente as influências e fontes Martinezistas presentes no seio do Regime Escocês Retificado não precisa se debruçar brutalmente sobre o “Tratado de Reintegração dos Seres”, bastando para tanto, em primeiro lugar, dedicar seus estudos “as lições de Lyon” que estão muito mais em conformidade com os fundamentos espirituais do Regime do que o tratado em si.
Sem dúvida, insistimos fortemente sobre esse ponto, a doutrina de Martinez teve que sofrer uma grande correção no que diz respeito ao sentido trinitário e cristológico, eliminando os vestígios de modalismo que possuía e passando a insistir, como soaria normal para qualquer iniciação cristã, na dupla natureza do Reparador dos Mundos (Nosso Senhor Jesus Cristo). Isso porém não muda a perspectiva legada pela Ordem Cohen, ao contrário, isso a purifica, a aperfeiçoa, demonstrando assim, de modo absolutamente incontestável, que o Regime Retificado contribuiu para salvaguardar e preservar os elementos principais da doutrina de Martinez, posto que é - indubitavelmente - transmissor de uma autêntica e direta herança, deixada por Martinez de Pasqually a nós, pela intermediação de Jean-Baptiste Willermoz, incluindo nisso a transmissão da prática do culto primitivo, cujo traço é visto pela concepção quaternária da iniciação retificada e pela elevação do altar de perfumes. E este aspecto das coisas, para não dizer "da coisa", merece reflexão.
Esta convicção é sublinhada no seu prefácio para “As Lições de Lyon” por Robert Amadou, que reconhece e, evidentemente, encontra as profundas alterações feitas por Willermoz com respeito à Ordem dos Elus Cohen, mas também afirma a propósito do Regime Escocês Retificado que "encerra os conhecimentos misteriosos da ciência religiosa do homem" de acordo com Martinez.
"O último sobrevivente entre os quatro Réau-Croix [Willermoz], que nasceu em 1730 mudou completamente as formas ao estabelecer seus ‘Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa’. Em sua nova sociedade, ele aboliu as operações teúrgicas, mas as embutiu nos conhecimentos misteriosos que lhes eram correlatos (segundo as idéias de Martinez) e dotou-os do valor teosófico da caridade com o qual concordam todos maçons. [...] Desde o primeiro grau do Regime Escocês Retificado, que integra a Maçonaria Azul, o recipiendário se beneficia dos indícios da tricotomia que o compõe [...] Logo, se eleva”.
Estes detalhes luminosos concernentes a natureza do sistema fundado por Willermoz e a divina ciência que ele abriga, se revelam por sua vez como uma evidência, uma alegria e uma grande serenidade a propósito do valor do Regime Retificado mas estabelecem-se, como tudo mais nesse campo, como uma grande responsabilidade e acima de tudo como uma missão a se cumprir, cujos termos indiretamente sublinham os deveres daqueles que humildemente caminham aceitando como guia as verdades essenciais da Ordem.
Jean-Baptiste Willermoz cumpriu sua meta: preservou a doutrina de Martinez de Pasqually, em total conformidade com aquilo que dele aprendera e a aperfeiçoou , o que permitiu que ela não se afogasse em erros crassos; o que garantiu a inviolabilidade de seu ponto central: A Reintegração.
== Conclusão ==
Assim, agora instruidos, podemos penetrar o sentido verdadeiro da sentença:
“A Ordem dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa tem um segredo, o segredo de Jean-Baptiste Willermoz; sua meta é alcançar, a sua própria maneira, a meta fixada pela Ordem dos Cavaleiros Elus Cohen do Universo, a saber, a reintegração do homem à suas propriedades primeiras, virtudes e potências espirituais divinas.”.
Reintegração esperada e situada no espírito do regime fundado por Willermoz, tendo por objetivo a reedificação espiritual do homem, conduzindo-o das trevas deste mundo para a Luz do Ser Eterno e Infinito, que é bondade, justiça e a própria verdade ... (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida...” - Jo. 14:6).
E para terminar, um vídeo com uma reflexão sobre o Regime Retificado.
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
Fontes:
JEAN-BAPTISTE WILLERMOZ EN LA ESCUELA DE MARTINES DE PASQUALLY: GÉNESIS DEL RÉGIMEN ESCOCÉS RECTIFICADO - Jean-Marc Vivenza
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