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O Falso que se Torna Verdadeiro: Reflexões sobre Iconografia, Memória e Purismo

  • Foto do escritor: Primeiro Discípulo
    Primeiro Discípulo
  • 28 de set.
  • 4 min de leitura

Em artigo recente sobre a controvertida figura do “guru Cohen”, Martines de Pasqually, delineamos o núcleo de sua biografia marcada pela invenção de uma tradição, por credenciais frágeis e em parte falsas, e por uma trajetória conflituosa que apenas se consolidou graças à mediação willermoziana no Regime Escocês Retificado. A partir desse eixo, fomos prontamente admoestados em algumas redes sociais (sempre elas, oráculos infalíveis da crítica instantânea) por irmãos que se escandalizaram com a imagem utilizada para ilustrar o artigo. Em um verdadeiro prodígio hermenêutico, as primeiras censuras surgiram exatos dois minutos após a publicação, embora o texto exigisse, segundo qualquer cálculo razoável, ao menos onze minutos de leitura atenta. Alegava-se, então, a polêmica em torno do retrato atribuído a Pasqually, tido como ofensivo em sua circulação como emblema “verdadeiro”, com efeitos sobre a memória martinista/martinezista/willermoziana aparentemente mais escandalosos do que todos os pormenores de sua trajetória, sua pseudo tradição, suas celeumas em lojas maçônicas e outras obscuras intrigas que pairam sobre sua vida.


Resolvemos então lançar alguma luz acerca da questão, a fim de fornecer a nossos leitores uma compreensão mais clara sobre o desenvolvimento das iconografias e sobre a razão pela qual figuras como o retrato de Martines de Pasqually têm sido utilizadas, de forma persistente, em todo o mundo. Seja em capas de livros sérios, artigos acadêmicos ou compêndios de estudos maçonicos/esotéricos, tais imagens exercem uma função social e simbólica que transcende a simples veracidade histórica (o que não constitui mal algum).


O caso do retrato de Martines de Pasqually, divulgado por Léo Taxil em sua obra de fins do século XIX, constitui exemplo paradigmático do modo como a iconografia pode nascer de uma falsificação e, não obstante, adquirir estatuto de verdade histórica por força de sua circulação e recepção.¹ Embora denunciado desde cedo como espúrio, ridículo e até malicioso, sobretudo por Robert Amadou², o retrato sobreviveu ao tempo, tendo sido retomado por autores respeitáveis como Arthur Edward Waite³, e, a partir daí, perpetuado como referência visual. A questão que se impõe é: como um artefato de origem tão duvidosa pode consolidar-se como “verdadeiro”?


Historicamente, o fenômeno se explica pela função de preenchimento que a iconografia desempenha. Onde não há testemunho fidedigno da aparência de uma personagem, a comunidade cria, adota ou aceita imagens substitutivas. Essa dinâmica não é nova: o rosto de Cristo, por exemplo, não nos foi transmitido por nenhuma fonte contemporânea, mas foi progressivamente fixado ao longo dos séculos por convenções pictóricas, ao ponto de ser hoje defendido por muitos como “histórico”.⁴ Assim, a imagem, mesmo falsa, satisfaz a exigência de visibilidade do passado.


Do ponto de vista social, trata-se de um fenômeno ligado à necessidade de coesão. Comunidades não toleram o vazio simbólico: é indispensável atribuir forma e fisionomia a seus fundadores e mestres espirituais. Nesse sentido, o retrato de Pasqually, por mais apócrifo que seja, cumpre uma função de identificação coletiva. Tornou-se “verdadeiro” porque foi aceito como tal, e essa aceitação é, sociologicamente, mais relevante do que sua origem fraudulenta.⁵


Psicologicamente, a questão se reveste de outra dimensão: a mente humana não se satisfaz com abstrações. Precisa de rostos para projetar significados. Mesmo quando nasce do escárnio, como no caso de Taxil, a imagem pode ser apropriada pela comunidade e reinterpretada. A zombaria inicial é dissolvida na força simbólica da repetição, e o caricatural se transmuta em emblemático.⁶ Assim, a falsificação deixa de ser uma fraude para converter-se em mito.


É nesse ponto que surge a voz dos chamados puristas, zelosos defensores da “autenticidade”. São aqueles que, munidos de indignação, clamam pela extirpação do retrato de Pasqually como se fosse uma ameaça à integridade histórica. Contudo, sua crítica revela um equívoco de método: imaginam que a história cultural se construa como um cartório, dependente de certidões e provas notariais (se tal rigor fosse empregado no contato com "a coisa", toda teoria martinezista quedaria por terra. Curiosamente, não evocam rigor para tal...). Quando, na realidade, a história cultural se organiza em torno de símbolos compartilhados, os quais, por sua própria natureza, transcendem a veracidade documental. Condenar o retrato de Pasqually porque falso é, em última instância, tão insensato quanto exigir a destruição das estátuas de Homero pela ausência de registros autênticos de sua fisionomia.


O rigor purista, portanto, revela-se mais risível do que respeitável. Ao pretender corrigir a imaginação coletiva, esquece que a iconografia não é fotografia, mas mito visual. A ironia histórica reside no fato de que o retrato, concebido para ridicularizar, acabou perpetuando a memória de seu suposto modelo com muito mais eficácia do que qualquer documento crítico. A falsificação triunfa como verdade porque, em termos sociais e psicológicos, cumpre melhor a função de dar corpo ao invisível. Os puristas, entrementes, permanecem na posição desconfortável de censores do inevitável, como aqueles que pretendem soprar contra o vento.



Notas


  1. Cf. Léo Taxil, Le Diable au XIXe siècle (Paris, 1892), passim.

  2.  “Robert Amadou, Louis-Claude de Saint-Martin et le Martinisme: introduction à l’étude de la vie, de l’Ordre et de la doctrine du Philosophe inconnu (Paris: Le Griffon d’Or, 1946), p. 47”

  3. Arthur Edward Waite, The Secret Tradition in Freemasonry (London, 1911), vol. I, p. 132.

  4. Ver, por exemplo, Jaroslav Pelikan, Jesus Through the Centuries: His Place in the History of Culture (New Haven: Yale University Press, 1985), cap. 3.

  5. Sobre a função social da iconografia, cf. Ernst H. Gombrich, Art and Illusion (Princeton: Princeton University Press, 1960), p. 287.

  6. Uma análise semelhante pode ser encontrada em Mircea Eliade, Mito e Realidade (São Paulo: Perspectiva, 1972), cap. II.


I.C.J.M.S. Que a Ordem Prospere!


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