N.T.: Este trabalho é de autoria do Ir Eduardo R. Callaey e nos trás uma parte da história sobre os primórdios da maçonaria pouco conhecida no Brasil. O traduzimos para suscitar nos irmãos maçons brasileiros a boa pratica da pesquisa (Em nosso caso sobre a história de nossa querida Ordem, sem a preocupação com o rito que cada irmão pratica em sua Loja). Nossos irmãos fundadores do RER buscaram em tempos antigos respostas para perguntas que poucos se dispunham a procurar ou nem mesmo se faziam:
"Qual é a origem da maçonaria e o porquê de sua criação? Qual é o seu verdadeiro segredo? "
Como já exposto em trabalhos anteriores Willermoz teve acesso a vários rituais, atas, documentos, cartas e contato com irmãos maçons de todo o mundo em sua busca por respostas a essas perguntas. Não estamos afirmando que o RER é a resposta ou que é a maçonaria ‘Original’, mas que certamente preencheu os anseios dos irmãos maçons ávidos por uma maçonaria mais centrada no crescimento moral e espiritual baseados na Bíblia, uma vez que nosso juramento se realiza sobre ela, e nos ensinamentos do Cristo, sem o qual o Livro da Lei não existiria.
Portanto nós, irmãos do século XXI, devemos manter nossa mente ávida por respostas sobre as origens da Maçonaria e sua história, sem “preocupação com raças ou fronteiras”, “de norte a sul, de leste a oeste”, indo além do já conhecido.
“ Como o caracol que guarda o misterioso som de um mar pretérito, as pedras das antigas abadias beneditinas e das imensas catedrais erguidas no centro das cidades medievais, conservam a marca destes homens e o eco de seus maços e cinzéis, testemunham uma nova cultura que eles mesmos ajudaram a gestar edificando Templos a Virtude”.
O nascimento das guildas
Durante os séculos XI e XII, as tensões acumuladas no seio da Europa durante o primeiro milênio do cristianismo se encaminhavam à seu destino e, nesse desenvolvimento incipiente das bases de uma nova consciência e de uma nova sociedade, começavam a tomar forma algumas estruturas que podemos considerar antecessoras diretas da Maçonaria Operativa. Surgem as primeiras associações de homens dedicados ao ofício de construir, ligados em um primeiro momento as ordens monásticas, principalmente as de Cluny e Cister (1). Porém também é o momento da aparição dos primeiros antecedentes das corporações gremiais da Baixa Idade Média e o renascimento da cultura urbana. As cidades começam a ressurgir de uma longa e obscura letargia.
Nesses anos se inverte na Europa o fluxo das invasões. São os anos que Guilherme “O Conquistador” (2) unifica a política normanda em ambos os lados do Canal da Mancha, em que seu primo Roberto Guiscardo (3) navega até a Sicília e que Boemundo (4), duque de Puglia e Calábria, fez flamejar o estandarte de Taranto nas torres de Antioquia. O comércio se expande pelo Mediterrâneo através das frotas de Veneza, Pisa e Gênova, que logram franquias e bases nos novos estados cristãos da Síria. Insinua-se uma nova cultura agrária e um incipiente desenvolvimento das potências produtivas, que passam a gerar um fluxo inédito de divisas até os grandes conglomerados urbanos. Os monastérios são centros de enorme irradiação espiritual e intelectual e aparece uma arte que se expande quase simultaneamente em uma vasta geografia: o Românico (5). Os mesmos anos nos quais Bernardo de Claraval (6) exorta aos barões do Ocidente a dar a vida pela Cruz e que seu sobrinho, Hugo de Payens (7), lhe pede uma regra para a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo do Templo de Jerusalém que acaba de fundar junto a outros oito cavaleiros cruzados.
É também o tempo em que o abade Suger (8), de Saint-Denis, em cuja cripta descansam todos os reis de França, põe os cimentos de uma nova arte a qual está atada definitivamente a franco-maçonaria: O Gótico.
Ainda considerando, a priori, que não podemos ir mais além de um esboço: Como poderíamos compreender a Maçonaria senão no contexto de todos estes feitos e muitos outros? Como separar a conformação das corporações e os grêmios de ofícios dos novos fatores econômicos que surgem destas novas condições? Como dissociar as novas forças produtivas que surgiram no continente do renovado impulso que implica a construção quase simultânea de centenas de obras imensas que ainda hoje nos comovem?
Logo, de um longo processo que alguns se empenham em denominar obscuro, porém no qual se gestou uma nova Europa, começam a surgir novas potências. A princípio apenas umas poucas “ilhas” nas quais o conhecimento permaneceu resguardado por trás dos muros de antigas abadias, que conservaram uns poucos textos preservados e alguma relíquia de seus fundadores. Apenas alguns pequenos grupos de teólogos nas cortes de algum rei guerreiro de renome.
Entretanto, “ ... ao menos, estes centros de estudo, estas bibliotecas, estes tesouros cujos mais belos camafeus levavam o perfil de Trajano ou de Tibério, asseguraram, através de uma cadeia ininterrupta de renascimentos ingênuos e efervescentes a permanência de certa Ideia do homem: a estética de Suger, a ciência de Santo Tomás de Aquino, o florescimento da arte gótica e a vontade de libertação que esta levava, tem suas raízes naqueles ilhotes de cultura perdidos em meio da rusticidade, da brutalidade do ano mil...”.
Para compreender todas estas forças é necessário analisar alguns pontos em particular:
1 - Em primeiro lugar é necessário entender os sentimentos que se aninhavam na humanidade que se enfrentava e se estremecia com a chegada do segundo milênio da cristandade. A data 1033, ano no qual se cumpriam 1000 anos da paixão de Jesus, ficou gravada pela pena de muitos homens que nos permitem uma observação privilegiada sobre a Europa do século XI.
2. - A segunda questão é a aparição repentina de uma arte nova. A arte e a arquitetura do século XI representam um desafio aos historiadores e uma chave para os maçons, posto que é uma arte na qual se reconhece um “proceder iniciático” como admitem alguns grandes medievalistas. A expansão do românico, as artes figurativas que complementam esta nova visão da arquitetura, da música e da liturgia estabelecem uma nova forma de comunicar e educar. A questão da expansão do românico e a irrupção posterior do gótico não são processos espontâneos, senão que se inscrevem em uma nova “pedagogia” . E para que algo assim ocorra deve haver existido necessariamente um plano, posto que resulte evidentemente se tratar de uma arte concebida “... para instrução das massas... expressada por uma linguagem acessível a todos...”.
3. - Para que este ressurgimento da arte e da arquitetura tenha sido possível é por sua vez necessário conceber os termos de um plano a ser desenvolvido sobre uma geografia tão vasta, devem necessariamente haver existido condições econômicas que modificaram a realidade social, sua composição, as forças produtivas que nela atuavam e os recursos materiais e humanos para levar-lhe a cabo. Neste esquema, a figura do maçom adquire sua realidade histórica, pois que se constituiu na base de um projeto pedagógico. Neste projeto, o maçom primeiro, logo depois a loja e, finalmente, a Maçonaria, começaram como ferramentas até se converterem, com o tempo, em uma força consciente desta nova pedagogia, possuidora de um conhecimento que, como a arte que a inspira, é iniciático. Os fatores econômicos estabeleceram novos tipos de associação entre artesãos e trabalhadores de ofícios. Finalmente, o agrupamento de indivíduos inspirados pelos mesmos símbolos, exaltados pelos mesmos arquétipos em sua imaginação e unidos a uma tarefa em que se fazem necessárias vias de transmissão de informação e conhecimento, lhes impõe constituir um mecanismo associativo particular: A Loja.
4. - O quarto ponto que não é possível desconhecer é que nessa sociedade, na qual as estruturas feudais alcançam seu apogeu, surge também uma nova moral atada ao ideal cavaleiresco, que não está em contradição com esta grande expansão artística, espiritual e econômica, mas que é também sua consequência. A cavalaria começa por ser um componente militar, porém deriva rapidamente em uma nova elite de indivíduos que redescobrem o mito do herói e se lançam em suas aventuras pessoais com um novo código moral. A necessidade de combinar as artes cavaleirescas e a vocação espiritual herdada do amor a vida monástica tem como resultado as ordens militares, cuja influência na franco-maçonaria já foi suficientemente tratada nos últimos anos por importantes medievalistas.
Convém começar com uma visão geral do século XI e nada melhor para isto que as palavras do monge Raul Glaber (9), citadas numa infinidade de ensaios e tratados, que refletem com enorme força testemunhal o espírito daqueles anos: “... Ao se acercar o terceiro ano que seguia ao ano 1000, se viu em quase toda a terra, especialmente na Itália e na Gália, reedificar os edifícios das igrejas; ainda que a grande maioria tivesse sido muito bem construída e não o necessitavam em absoluto. Uma autêntica emulação impulsionava a cada comunidade cristã a possuir uma igreja mais suntuosa que a de seus vizinhos. Se dizia que o mundo se sacudia para se despojar de sua velhice e se revestia por todas as partes de um manto branco de igrejas. Então quase todas as igrejas das sedes episcopais, as dos monastérios consagradas a qualquer santo e inclusive as pequenas capelas das aldeias foram reconstruídas pelos fiéis com grande beleza...”. Outras testemunhas o corroboram, como o bispo Thietmar de Merseburgo (10): “... havendo chegado aos mil anos da concepção do Cristo Salvador pela Virgem sem pecado, se viu brilhar no mundo uma manhã radiante...”.
Não há dúvidas de que se tratava de um amanhecer para uns poucos, somente alguns no topo da pirâmide feudal, um pequeno grupo de homens ao redor do senhor feudal ou do bispo podiam perceber os efeitos desta mudança. Paulatinamente a Europa ia deixando para trás os difíceis anos de grandes fomes, a miséria e a angústia.
Jacque Heers (11) define assim aquele momento: “... nestes anos se confirmou um amplo movimento, desigual e mais ou menos precoce, que afetou a todos os países do Ocidente e lhes conferiu um novo equilíbrio econômico e humano em troca de ferozes esforços levados a cabo durante séculos. Não há dúvida de que este florescimento da Europa foi provocado por um forte crescimento demográfico que tornou necessária a busca de novas terras e novas atividades...” As causas deste empuxo demográfico são diversas.
Muitos autores concordam que o esforço contínuo por melhorar as técnicas de produção agrária começaram a dar resultados positivos no final do século X, principalmente dentro das vastas porções de terra sob o domínio monástico. Estes avanços aceleraram a atividade de desmonte e modificaram paulatinamente a dieta alimentar o que permitiu, com o tempo, passar de uma economia de sobrevivência a uma que assegura, sempre dentro de certas limitações, comer o ano todo. Entretanto, no início do século XI ainda acontecem graves crises de subsistência entre as quais cabe mencionar a grave carestia do ano 1033. Entre as consequências desta pressão demográfica se deve incluir a expansão militar, política e religiosa do Ocidente. As cruzadas são uma dessas consequências, mas também o são os feitos de armas que intentam recuperar na Espanha os territórios sob o domínio islâmico e as invasões alemãs aos territórios eslavos da Europa oriental.
Porém, em longo prazo, disse Heers: “... as transformações substanciais sofridas pela economia ocidental constituíram um fator muito mais decisivo...”, o desenvolvimento do comércio internacional; ocupação das cidades e surgimento da sociedade urbana; crescimento da quantidade de mão de obra e origens da vida industrial. Ao que deve se agregar o já mencionado avanço da economia agrária. Neste contexto, alguns autores preferiram encontrar em meio destas transformações econômicas as causas da aparição dos grêmios medievais, outros indicam suas origens nas associações religiosas constituídas no entorno dos grandes monastérios ou como consequência a imitação das corporações mercantis surgidas nas grandes cidades mediterrâneas. O certo é que, até fins do século XI, aparecem as confrarias (fraternitates – caritates), os grêmios de ofício e -entre eles- as guildas de construtores que se estendem com rapidez vertiginosa.
Em poucos anos aparecem em cidades tais como Mainz, Worms, Wurtzburgo, Rouen, Colônia. Ao final do século XI já estavam estabelecidas na Inglaterra - com a denominação de “craftgilds” - em Oxford, Huntington, Winchester, Londres, Lincoln e numa infinidade de pequenas vilas, como no resto do continente. A Europa estava a ponto de conceber a maçonaria operativa. Podem ou não concordar os autores com relação às origens pretéritas da Ordem, mas todos concordam quanto a seu vínculo com os grêmios e as “guildas de construtores" medievais".
Provavelmente deveríamos estabelecer em primeiro lugar o que nos referimos por “guildas de construtores”. Fazemos menção aos Arquitetos? Aos Canteros (cortadores de pedra) ? Aos escultores do mármore? Todos estes ofícios intervinham na construção; bem como os carpinteiros, os ferreiros, os seladores, os vidraceiros etc. Portanto, poderíamos adotar o critério de nos referir aos grêmios em sentido mais genérico que é de “pedreiro” . Se a Loja era uma espécie de fábrica na qual não apenas se planificava mas que também se dirigia e, fundamentalmente, se garantia a continuidade de uma obra cuja execução demandaria anos e até “gerações” inteiras de artesãos e trabalhadores, é lógico incluir, entre suas múltiplas atividades, a coordenação de obreiros e oficiais especializados nos mais diversos ofícios.
Existem numerosos estudos em torno da origem das corporações de arquitetos e dos grêmios de artesãos em geral; é assim que - em linhas gerais - mesmo neste século muitas investigações seguiram o caminho dos eruditos dos eruditos do século XIX, quanto a considerá-las uma continuação do “Collegia Fabrorum” da antiga Roma. Muitos destes trabalhos resultaram em uma contribuição importante para o estudo da economia na Idade Média e vale a pena fazer algumas menções: Henri Pirenne, em seu tratado clássico sobre economia medieval disse que, ainda que se supunha por muito tempo que os Collegia haviam sobrevivido as invasões germânicas, “... nenhuma prova se pode aduzir a favor de tal sobrevivência ao norte dos Alpes, e o que se sabe do absoluto desaparecimento da vida municipal a partir do século IX, nos permite admiti-lo...”. Para o sábio belga, apenas nas regiões da Itália que permaneceram durante a Idade Média sob a administração bizantina pode se haver conservado alguma forma de organização herdada dos Collegia, “... porém este fenômeno é demasiadamente local e de importância demasiadamente mínima para que dele se derive uma Instituição tão geral como a dos grêmios...”.
As opiniões são absolutamente divergentes mesmo entre os autores das obras mais importantes relacionadas com este tema. Alguns estudiosos, como P. S. Leicht (12), que escreveu numerosos trabalhos a respeito em particular “Corporazioni romane e arti medievale” sustenta - como Pirenne - que a influência dos Collegia se reduz ao território italiano e prefere ver a origem das corporações gremiais em algumas formas de associação desenvolvidas em Renânia e ao norte da França pela política do Império Carolíngio (13). Enquanto isto, na mesma época, outro italiano, M. G. Monti rejeitou qualquer possibilidade acerca de alguma sobrevivência dos Collegia romanos e negava tal origem para as corporações medievais mesmo na Itália.
Do mesmo modo, alguns estudiosos da economia medieval acreditavam ver sua origem no direito senhorial, denominado “hofrecht”. Segundo esta ideia, as associações de artesãos haviam se desenvolvido dentro dos grandes senhorios e domínios surgidos desde a época carolíngia e posteriormente. Os artesãos, organizados dentro de cada latifúndio pelo senhor feudal, atuavam, segundo esta visão, sob a vigilância de chefes que regiam o comportamento de cada ofício, assim como sua produção e o produto da mesma. Trata-se em definitivo de servos especializados em um ofício cuja atividade esta regulada pelo senhor a quem pertencem. tentou-se em vão estabelecer o ponto no qual estas associações de ofícios receberam autorização para abrir sua atividade além dos limites do senhorio ou, simplesmente, para trabalhar para o público. Esta linha de raciocínio sustenta que isto se sucedeu em algum momento do século XI e que, então, alguns homens livres ingressaram nestas confrarias que, com o tempo, passaram de associações servis para grêmios autônomos.
Os critérios que atualmente prevalecem quanto à formação dos grêmios se inclinam a livre associação. O crescimento das cidades e vilas que se registra a partir do século XI, provoca um auge até então desconhecido em torno aos ofícios que tem relação direta com um processo industrial incipiente. O crescimento de indivíduos participantes de uma mesma atividade industrial ou artesanal impõe a necessidade de associação por múltiplos motivos: a defesa comum, a assistência mútua, a caridade entre os membros que a compõem, a defesa contra a concorrência, a regulação da atividade etc. É provável que tenham tomado como antecedentes as associações comerciais, já amplamente difundidas na Europa mediterrânea e também as de natureza religiosa surgidas no entorno de monastérios e de grandes latifúndios da Ordem Cisterciense (Ordo cisterciensis, O. Cist.).
O segundo fator que intervém neste critério é o do poder público. Muitos autores - entre eles o já mencionado Henri Pirenne - acreditam que “ ... Por mais importante que tenha sido a associação, ela sozinha não basta, para provocar a constituição de grêmios. É preciso conceder um amplo lugar, fora dela, ao papel desempenhado nesta formação pelos poderes públicos...”. Esta avaliação se baseia considerando a sobrevivência, durante a Idade Média, de certo poder de polícia por parte do Estado – leia-se aqui por Estado, a qualquer poder público seja este regio, municipal ou episcopal - quanto ao monopólio das pesos e medidas e do controle das estruturas de comercialização de bens e mercadorias.
Ao final século XII, estas associações gremiais cairiam irremediavelmente sob o controle comunal e seriam finalmente legisladas nas primeiras constituições urbanas. Desta época provém a maioria dos documentos que se consideram antecedentes diretos das “Constituições ” maçônicas modernas. Como vimos em trabalhos anteriores, muitos destes documentos são de notória inspiração na Constituição de Sesgo Cluniacense.
Imaginemos por uns momentos a vida destas associações... Imaginemos estas potências que começavam a despertar em uma Europa que pouco a pouco povoava novamente suas cidades “... forradas por um branco manto de igrejas”, salpicada de um sem número de enormes obras que começavam a se construir quase simultaneamente e que iriam mobilizar ao longo de anos sucessivos uma imensa quantidade de toneladas de pedra. Uma sociedade na qual grupos de homens, hábeis em distintas artes e ofícios, sob a proteção comunal ou episcopal, começam a estabelecer vínculos profissionais na mesma época em surgem os grandes pensadores da Idade Média.
De uma perspectiva puramente econômica, os grêmios e as corporações medievais são grupos absolutamente privilegiados. O poder público não apenas lhes outorga a exclusividade do ofício que exercem como lhes fornece garantias e proteção. Em troca, as corporações pagam uma franquia. No entanto, no século XI e em grande parte do XII, os grêmios estão ainda muito distantes da autonomia. Seus estatutos e regras são ditados pelo poder municipal, carecem de liberdade para se administrar e não tem iterferência além das “questões da arte” ; porém já existe uma estrutura basicamente constituída por mestres, companheiros (oficiais assalariados) e aprendizes.
Vejamos a descrição de um economista - Pirenne, novamente - sobre esta estrutura:
“... Os membros de cada corporação são divididos em categorias subordinadas entre elas: mestres, aprendizes e companheiros. Os mestres constituem a classe dominante da qual dependem as outras duas. São pequenos chefes de oficinas, proprietários de matéria prima e de utensílios. O produto fabricado lhes pertence, por conseguinte, e todos os ganhos de suas vendas ficam em suas mãos. A seu lado, os aprendizes se iniciam no ofício sob sua direção, já que ninguém pode ser admitido no exercício da profissão sem garantia de aptidão. Os companheiros; enfim, são os trabalhadores assalariados que terminaram seu aprendizado mas que ainda não estão prontos para serem elevados à categoria de mestres... O número destes é limitado, (se limita às exigências do mercado local) e a aquisição da maestria esta sujeita a certas condições (pagamento de direitos, nascimento legítimo, afiliação a burguesia) que tornam a aquisição bastante difícil...”.
Tal descrição é familiar para qualquer maçom. Na verdade, faz referência a grêmios de carácter “local”, estabelecidos em vilas e cidades, sem “mobilidade”. Seus privilégios estão limitados à área sobre a qual governa o município ou o bispo que os protege.
As guildas de construtores tinham necessariamente privilégios adicionais, privilégios que por sua vez lhes permitiam uma liberdade dificilmente acessível para aos homens do século XI, uma liberdade que, como era de se esperar, formou homens diferentes. A necessidade de contar com estas verdadeiras superestruturas industriais itinerantes, capazes de despachar mestres de ofício, artesãos, obreiros e pessoas de todo os tipos, capazes por sua vez de mover grandes volumes de materiais primas e erigir, simultaneamente, as maiores obras até então construídas no ocidente, a partir de uma nova arte: A arte românica.
Sua aparição, em meados do século XI, é de grande importância para compreender o desenvolvimento posterior das grandes corporações que construíram as grandes catedrais. De fato, a arquitetura que emerge da arte românica, oferece um testemunho extraordinário da aceleração histórica que, em meio a esse século, une aos progressos materiais as transformações sociais e as mutações espirituais. Jacques Le Goff (14), afirma, baseando-se nos trabalhos sobre o humanismo românico realizados por Pierre Francastel (15), “... A existência de uma ruptura profunda no ideal estético por volta do ano 1050. Isto nos permite fixar um ponto de partida para o estilo românico e acentua a importância histórica de uma data já considerada como particularmente notável...” e continua: “... Pierre Francastel descobre deste modo em meados do século XI ‘uma vontade nova de coordenação com relação a abóbada das diferentes partes do edifício cristão’. No se poderia simbolizar melhor o esforço de síntese que, em todos os âmbitos, vai inspirar a expansão do mundo ocidental... ”.
O que Francastel descreve é uma profunda renovação artística que ocorre e é resultado de um profundo renascimento espiritual, cuja expressão mais completa são as grandes abadias românicas. E esta renovação não se limita a um novo conceito arquitetônico mas a arte que a expressa: “... Seus muros e suas abóbadas de pedra esculpidas, as extraordinárias decorações de seus campanários e capitéis, ou em seus afrescos naturais que em muitos casos foram descobertos somente a partir do início deste século...”.
Denomina-se arte românica, na medida em que deriva diretamente da arte romana e se inspira no estilo das Basílicas e das cidades latinas. Por outro lado, e tal como Heers afirma: “... eram notoriamente distintas as expressões artísticas próprias dos reinos bárbaros da alta Idade Média e da arte cristã oriental...”. Preocupados por aliviar as paredes e equilibrar o peso das abóbadas, os arquitetos que desenvolvem o românico centram seus esforços em desenvolver a coluna e o arco, inventam o trifório e tomam dos bizantinos a arca de vieira. As enormes paredes descansam em contrafortes sólidos. As naves se estreitam se modificando a planta da basílica romana tomando a forma de uma cruz.
Alguns autores sustentam que a grande arte românica só se impõe primeiramente nos países do meio-dia (16). Suas características não são, em princípio, uniformes e variam de uma região a outra. Heers, Le Goff, Duby e muitos outros medievalistas concordam que suas origens são muito complexas. Porém basicamente podemos concordar que existiram dois antecessores fundamentais da arte românica: Uma arte românica primitiva herdada da arquitetura carolíngia e uma arte românica primitiva meridional, na qual as artes decorativas, as esculturas, os afrescos e o mobiliário, são muito mais destacados.
Depois do ano 1050, estas tradições e inovações artísticas e arquitetônicas triunfaram e se difundiram em toda Europa. Constituíram uma arte original que alcançou seu apogeu nas grandes abadias beneditinas, especialmente as da Ordem de Cluny. Foi nesta mesma época onde começaram a aparecer registros concretos de uma grande quantidade de guildas e grêmios, especificamente vinculadas a construção destas grandes Igrejas Abaciais, movendo-se pelas estradas das grandes peregrinações, difundindo a nova arte, e com isto, o complexo simbolismo que o românico desenvolve. É o ponto em que as grandes abadias alcançam o auge de seu prestígio.
Há atualmente uma opinião generalizada de que os mestres maçons de Milão e Como – conhecidos como “Magistri Comacini” - tiveram ativa participação em uma nova forma de construção difundida na Lombardia desde o ano 1000 e que fez parte de uma arte românica primitiva meridional da qual se ocuparam autores como L. Grodecki (17). Sua influência chegou ao litoral mediterrâneo da França e Catalunha, dos vales do Ródano e do rio Saona até a Borgonha e os vales alpinos.
Os homens que se moviam seguindo as rotas da expansão artística do românico acrescentavam um privilégio adicional à condição já privilegiada de seu ofício: Eram homens livres dos limites do domínio do senhorio; estavam além do poder territorial do feudalismo - que estava em seu auge - e contavam com uma ferramenta que pouquíssimos homens da época dispunham: ver o mundo além do seu lugar de nascimento. Alguns registros conservados nos arquivos da catedral de Santiago de Compostela, na igreja real de São João Batista de Leon e na Catedral de São Pedro de Jaca, dão conta de uma grande quantidade de escultores de pedra que, vindos do outro lado dos Pirineus, trabalharam nestas construções. Estas mesmas guildas deixaram sua marca em toda a arquitetura Cluniacense na baixa Borgonha e no norte da Espanha.
Antes do fim do século XI, o mundo passou por uma grande transformação. Séculos depois do desaparecimento do velho estado romano, aquelas culturas provenientes das planícies e estepes da profunda Europa denominadas “povos bárbaros” haviam logrado dar forma a uma nova forma de civilização que devia encontrar sua própria expressão iniciática. Durante muito tempo estes povos colidiram com a cultura celta dominante no norte e com a latina, que nunca cedeu de todo sua influência na Europa meridional. Ao largo desse imenso interregno de séculos ascenderam e descenderam os reis da casa merovíngia; os carolíngios, com sua “rex bellator” a frente, estabeleceram as bases da sociedade feudal; os monges de Benito de Nursia salvaram o que puderam e alguns homens aprenderam - em canções que nunca se esqueceram - os feitos de uns poucos campeões que salvaram o mundo da onda muçulmana. A Europa ocidental foi se distanciando, pouco a pouco, dos antigos patriarcas do cristianismo bizantino, e não é mera coincidência que nesse mesmo século XI, em 1054, os legados do papa deixaram sobre o altar de Santa Sofia a bula que excomungando o imperador Miguel Cerulario selando a divisão que duraria mil anos e ainda não se resolveu nos Balcãs. Na medida em que se distanciava dos antigos pais, tornou-se o próprio eixo de uma nova civilização que voltaria a cruzar as portas de Jerusalém atrás do exército dos francos e lotaríngios comandados por Godofredo de Bulhão e Raimundo de Tolosa.
O século XI acabava, porém o pensamento ocidental havia nascido. E logo se tornaria consciente de si mesmo. A razão encontraria um lugar ... e também progresso. Em meio deste clima, que tanto amava descrever Raul Glaver, repicavam os cinzéis dos escultores, os canteiros arrancavam da terra suas entranhas e os homens se formaram associações para se proteger mutuamente. Os abades competiam entre si para ver quem havia construído a igreja mais bela, enquanto os papas chamavam à cruzada e as pessoas iniciaram com o desmantelamento sistemático uma das transformações topográficas mais extraordinárias da história humana.
Nesse mundo, onde ainda estava tudo por fazer, é muito possível que tenha existido já algum tipo de maçonaria operativa incipiente, uma “proto maçonaria” limitada a um grupo de homens que foram reconhecidos pela posse de uma habilidade, um ofício que lhes permitia reunir sob sua direção a companheiros e aprendizes aos quais protegiam e ao mesmo tempo exploravam (no sentido de explorar recursos de...). Estes mestres eram o braço que executaria parte do plano civilizatório que precisava de uma arquitetura própria, uma arte que expressava em símbolos aquilo que o povo ainda não podia compreender, exceto em termos figurativos. Eram, em suma, aqueles que tornaram possível essa “pedagogia das massas” que havia sido lentamente desenhada pelos grandes abades do movimento monástico beneditino. Porém nunca saberemos até que ponto tinham consciência de sua parte nessa obra. Nem saberemos tampouco quantos deles, se por acaso algum, conheciam as histórias que o monge inglês Beda (18) havia escrito sobre o Templo de Salomão, imortalizado na famosa Glosa Ordinária escrita por outro beneditino: Valafrido Strabo (19).
Mas não estava longe o dia em que chegariam as primeiras lojas operativas.
“Monjes y Canteros” , Eduardo R. Callaey (Buenos Aires - Dunken - 2001).
Notas:
1) A Ordem de Cluny é uma ordem religiosa monástica católica que se originou dentro da Ordem de São Bento. Ordem de Cisteré uma ordem religiosa monástica católica beneditina reformada.
2) Guilherme o Conquistador e algumas vezes de Guilherme, o Bastardo, foi o primeiro rei normando da Inglaterra, de 1066 até sua morte em 1087.
3) Roberto de Altavila, cognominado Guiscardo, "astuto"(1025 – 1085).
4) Boemundo I de Antioquia, o Grande (1058 — 1111),primeiro príncipe de Antioquia e um dos líderes da Primeira Cruzada.
5) Arte românica é o estilo artístico vigente na Europa entre os séculos XI e XIII.
6) São Bernardo de Claraval nasceu na última década do século XI, no ano 1090, em Dijon, França.
7) Hugo de Payens (1070 - 1136), francês, primeiro mestre e fundador da Ordem dos
Templários.
8) Abade Suger (1081-1151) de Saint-Denis (França). Foi conselheiro de Luís VI e de Luís VII e Regente durante a Segunda Cruzada. Considerado "o pai da monarquia francesa"
9) Rodulfus Glaber monge e cronista francês do século XI (985 – 1047).
10) Dietmar de Merseburgo (975 – 1018), cronista germânico e bispo de Merseburgo.
11) Jacques Heers (1924 - 2013) historiador francês.
12) Pier Silverio Leicht (1874-1956) historiador italiano.
13) O Império Carolíngio foi à última etapa na história do reino medieval.
14) Jacques Le Goff (1924 - 2014) historiador francês especialista em Idade Média.
15) Pierre Francastel (1900 - 1970) historiador de arte francês.
16) Europa Meridional: chamada de mediterrânea, Portugal, Espanha, Itália, Grécia e Turquia europeia.
17) Louis Grodecki (1910 - 1982)historiador de arte francês.
18) Beda (672 - 735), conhecido também como Venerável Beda, foi um monge inglês que viveu nos mosteiros de São Pedro, em Monkwearmouth, e São Paulo, na moderna Jarrow, no nordeste da Inglaterra, uma região que, na época, era parte do Reino da Nortúmbria.
19) Valafrido (808–18 - 849), dito Estrabo ou Estrabão (latim "estrábico") foi um monge e
teólogo francês.
I.C.J.M.S
Que Nossa Ordem Prospere!!!
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