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O Enigma de Martines de Pasqually: Uma Biografia Escrita a Lápis.

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    Primeiro Discípulo
  • há 44 minutos
  • 11 min de leitura

Conforme já pontuamos em artigo anterior, raramente pareceres tão contraditórios foram emitidos a respeito de um iniciado e sua obra como no caso de Martinez de Pasqually. O Teurgo de Bordeaux surge, com contornos ambíguos e presença vacilante, no panteão das figuras enigmáticas do esoterismo do século XVIII. Fundador da Ordem dos Cavaleiros Maçons Élus Cohëns do Universo, apresentou-se como portador de um conhecimento primordial, uma doutrina secreta transmitida através dos tempos, cujos ensinamentos, centrados na ideia da reintegração do homem à sua condição divina original, marcaram profundamente o misticismo ocidental e serviram de fonte para o Regime Escocês Retificado.


Entretanto, por trás da fachada de tradição imemorial apregoada por Pasqually e, a posteriori, reclamada pelo Regime Escocês Retificado, esconde-se um paradoxo fundamental. Todo sistema maçônico, incluindo aí o de Martinès, procura apresentar-se como herdeiro de uma herança ancestral, a fim de legitimar sua autoridade. A realidade, porém, é muitas vezes outra: trata-se de uma criação histórica, aquilo que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “tradição inventada” [1]. Esse paradoxo manifesta-se de modo exemplar na trajetória de Pasqually, um labirinto de meias-verdades, documentos duvidosos e uma identidade tão fluida quanto seus próprios ensinamentos. Ao mergulharmos em sua biografia, encontramos aspectos surpreendentes e contraintuitivos que revelam como o mestre da reintegração foi, antes de tudo, um artífice na arte de tecer a própria lenda.


O primeiro desses aspectos é o caráter fabricado de sua suposta “tradição imemorial”. A expressão, teorizada por Hobsbawm, encaixa-se perfeitamente ao caso, pois Martinès, como outros gurus ou fundadores de ritos, precisava apresentar seu sistema como herança ancestral de algo maior e rejeitar qualquer ideia de criação ex nihilo (a partir do nada), o que comprometeria sua credibilidade. Se realmente tivesse recebido uma doutrina completa de predecessores sábios ou iluminados, por que teria passado tantos anos tentando formalizá-la por escrito, com perceptíveis variações ao longo do tempo? A evolução de seu sistema, que se deu de forma constante, sugere um processo de criação contínua, não a simples transmissão de um conhecimento recebido. Isso leva a duas hipóteses desconfortáveis: ou ele recebeu algo que deveria preservar, mas não conseguiu fazê-lo de maneira consistente, ou, muito mais provável, nunca recebeu nada substancial, participando ativamente da invenção e produzindo algo novo sob a cosmética do antiquário.


Outro aspecto que levanta estranhezas é sua biografia, marcada por contradições em quase todos os pontos. Pode-se começar, por exemplo, com sua data de nascimento: há documentos que sugerem 1710 [2]; entretanto, um certificado de embarque de 1772 para São Domingos indica 45 anos (nascido em 1727), enquanto sua certidão de óbito de 1774, em Porto Príncipe, aponta 47 anos, sugerindo 1726 ou 1727 [3]. O local de nascimento permanece igualmente incerto. Embora documentos mencionem Grenoble, pesquisas exaustivas nos registros paroquiais da cidade, incluindo a paróquia de Saint-Hugues indicada por Albéric Thomas, jamais encontraram seu batismo. A hipótese de Aix-en-Provence, onde seu pai teria recebido uma patente maçônica em 1738, foi igualmente examinada, mas a presença de sobrenomes semelhantes — Pascal, Martin, Latour, Dumas — apenas torna o mistério mais denso [4].


Até seu próprio nome nos inspira cautela, dadas as múltiplas variações que assumiu ao longo dos anos [5]. Em seu segundo casamento, declarou-se "Jacques de Lioron Joachim La Tour de La Caze Martinès de Paschually", mas assinou como "Don Martines de Pasqually" [6]. Em outras ocasiões, preferia "De Pasqually de Latour", atribuindo-se o título de escudeiro. No registro de casamento de Marie-Yolande de Morlhon, em 1759, usou apenas "Don Martinez" [7]. Além disso, sua origem familiar suscitou rumores persistentes de descendência judaica, talvez de marranos, hipótese reforçada pela presença de elementos cabalísticos em sua doutrina. Autores como Matter e Franck endossaram essa tese, enquanto Van Rijnberk e Robert Amadou a consideraram plausível. Contudo, ele sempre se apresentou publicamente como católico: casou-se na Igreja, batizou os filhos e chegou a apresentar um certificado de catolicidade quando questionado [8]. A própria palavra "Coën" (ou cohen), por exemplo, constava em dicionários do período com sentidos como "ministro de Deus", "sacerdote" ou "príncipe", podendo ser facilmente adaptada a títulos como "Cavaleiro" ou "Eleito" [9].


O auge do paradoxo é alcançado quando recordamos sua declaração no Tratado sobre a Reintegração dos Seres: “Desde a minha infância tive horror à mentira e ao orgulho; abjurei deles para professar apenas a verdade das coisas espirituais divinas e espirituais temporais. Portanto, não temais que eu vos fale a linguagem do erro”. Um homem envolto em mistérios e contradições documentais proclamava ser um arauto da verdade.


Se até seu próprio nome já causa confusão, não seria de se esperar o mesmo de seus títulos maçônicos? A pedra angular de sua autoridade era uma patente datada de 20 de maio de 1738, supostamente emitida por Charles Edward Stuart, pretendente jacobita ao trono britânico [10]. Mas a patente não resiste a uma análise cuidadosa, revelando-se uma falsificação grosseira [11]. Em 1738, Charles Edward tinha menos de 18 anos e não era rei — o pretendente era seu pai, Jaime III. Além disso, só seria iniciado na Maçonaria em 1745. O nome "Estuardo" aparece mal escrito, e a ideia de transmissão hereditária de uma loja contrariava as práticas jacobitas, baseadas em eleições anuais. Para completar, em abril de 1738, o Papa Clemente XII publicou a bula In eminenti apostolatus specula, proibindo os católicos de frequentarem lojas maçônicas, o que tornaria improvável a concessão de tal patente na Espanha católica, onde o regimento de seu pai supostamente servia [12]. Com o tempo, até Martinès deixou de mencionar o documento, tacitamente reconhecendo sua fragilidade.


Tampouco foi tranquila a sua carreira. Longe de ser um mestre venerado, sua trajetória foi marcada por desconfianças e conflitos [13]. Sua estratégia consistia em infiltrar-se em lojas já estabelecidas para recrutar discípulos, o que invariavelmente gerava tensões. Em Toulouse, foi acusado de ser um mero trabalhador de carruagens, deixou dívidas e acabou expulso da loja Trois Loges Réunies [14]. Em Bordéus, viveu situação semelhante: após um início promissor na loja La Française, foi amplamente questionado e ostracizado [15], enquanto seu rival Étienne Morin promovia na mesma cidade o Rito de Perfeição, com muito mais credibilidade e uma estrutura de 25 graus já aprovada em Paris [16]. O conflito chegou a tal ponto que o Conde de Ségur, tenente do prefeito, ameaçou prendê-lo após um tumulto causado por seus discípulos [17]. Suas tentativas de obter reconhecimento da Grande Loja da França resultaram em episódios caricatos, como a ameaça de denunciá-los à Grande Loja de Londres, que sequer reconhecia altos graus. Sua trajetória, assim, não foi a de um mestre seguro, mas de um inovador polêmico em busca de legitimidade.


Por fim, mas não menos importante, resta o aspecto mais enigmático de sua doutrina: o “segredo final”. O objetivo da teurgia martinista era alcançar “a Coisa” (la Chose), uma manifestação espiritual, uma visão ou contato direto com o divino que serviria de prova definitiva de sua doutrina. Esse segredo, porém, permaneceu inalcançável, até mesmo para discípulos fiéis como Jean-Baptiste Willermoz. Diante dos fracassos repetidos nas operações, Martinès recorria a desculpas que iam do cósmico ao prosaico: ora culpava a configuração das estrelas, ora a ausência de instruções que teriam ficado em Paris com seu substituto, Bacon de la Chevalerie. A frustração de Willermoz chegou a tal ponto que ele exigiu provas inequívocas em uma carta vigorosa, pedindo ao mestre que mostrasse o verdadeiro caminho e deixasse de agir como um “charlatão”. Talvez o segredo último de Martinès fosse tão elusivo para ele mesmo quanto para seus seguidores — uma busca incessante por uma revelação que nunca se concretizou.


No fim, ao descascar as camadas que envolvem o mito de Martinès de Pasqually, não encontramos um mensageiro de uma tradição imemorial, mas um “contador de histórias”, um “encantador de serpentes”, uma espécie de guru que “dourou a pílula” de sua própria história e doutrina. Sua vida foi tecida por contradições, sua autoridade assentada sobre credenciais frágeis ou falsas, e sua carreira marcada por conflitos constantes. Ainda assim, seu legado perdura. E eis a ironia final: foi justamente seu discípulo mais frustrado, Jean-Baptiste Willermoz — aquele que jamais experimentou “a Coisa” — quem garantiu sua imortalidade. Willermoz cristianizou e incorporou a doutrina de Martinès à Estrita Observância Alemã e, a partir dessa fusão, criou o Regime Escocês Retificado.


E assim resta a pergunta inevitável: Martinès de Pasqually foi um charlatão talentoso? Um místico genuíno que não conseguiu articular sua visão? Um mestre na arte de criar mitos cujo poder reside precisamente em seu mistério? Uma versão maçônica da mula de Balaão? A resposta, assim como “a Coisa”, permanece tão elusiva quanto o próprio homem.


Notas:


1 - A grosso modo, a “tradição inventada”, em Hobsbawm, é um conjunto de práticas simbólicas e rituais, reguladas por regras aceitas, que procuram inculcar valores e normas por meio da repetição, criando a sensação de continuidade com um passado (muitas vezes recente ou até fabricado) para legitimar identidades, instituições e autoridade. 

    

2 - A data de nascimento de Pasqually é uma das primeiras grandes contradições em sua biografia. Alguns documentos, como a patente maçônica que ele mesmo apresentava, datada de 1738, indicam que ele teria 28 anos naquela data, o que o faria nascer por volta de 1710. Essa data criaria um enigma em si mesma, pois se fosse verdadeira, tornaria suas atividades militares como tenente aos dez anos de idade improváveis. Embora essa informação exista, ela é frágil e contradiz outros registros mais confiáveis.


3 - O certificado de embarque para São Domingos, emitido na primavera de 1772, é um dado que "parece corresponder à realidade". Nele, Martinès declarou ter 45 anos, o que o situa nascendo por volta de 1727. Essa informação é considerada mais confiável porque ele teve que comparecer pessoalmente a um escrivão, que poderia verificar a coerência da declaração. Essa data é corroborada por sua certidão de óbito de 1774, em Porto Príncipe, que lhe atribui 47 anos, o que indica um nascimento entre 1726 e 1727.


4 - A investigação nesse local foi motivada pelo fato de ser onde o pai de Martinès supostamente recebeu a patente maçônica dos Stuart em 1738. Se isso fosse verdade, seria provável encontrar rastros da família na cidade. De fato, pesquisas nos registros paroquiais entre 1720 e 1750 revelam uma abundância de sobrenomes que poderiam estar ligados a ele: Pascal, Pascally, Martin, Latour, de La Caze, Dumas e Rainaud (o sobrenome de sua mãe). No entanto, essa multiplicidade, em vez de esclarecer, apenas "torna o mistério mais denso", já que nenhum registro combina esses nomes de forma a identificar conclusivamente sua família 


5 - Gérard van Rijnberk, um de seus biógrafos, elaborou uma lista dessas variações, embora estivesse convencido de que muitas delas eram apenas transcrições fonéticas fantasiosas feitas por terceiros. Já André Kervella em “Martinès de Pasqually: Una de las fuentes del Régimen Escocés Rectificado” afirma que o próprio Martinès hesitava, mudava e confundia seu próprio nome.


6 - Fato ocorrido em 27 de agosto de 1767, na igreja de Saint-Jean de Gornac.


7 - Ao assinar como testemunha no casamento sua assinatura foi ainda mais sucinta: "Don Martinez", com "z" no final e sem qualquer outro sobrenome ou partícula. Curiosamente, quando um secretário registrou sua presença em outro ato ligado à família Morlhon em 1761, seu nome foi "afrancesado" para "nobre Jacques de Lyoron-Joachim de Martín Pascual". Isso mostra que até as pessoas com quem ele se relacionava adaptavam seu nome.


8 - Apesar dos rumores, Martinès sempre se apresentou publicamente como um cristão católico. Afinal, qual heresiarca não o faz? Ele se casou na Igreja em 1767, batizou seus dois filhos e, quando interrogado por um discípulo ressentido, apresentou um certificado de catolicidade ao cura de sua paróquia. Em 1772, ao preparar sua partida para as colônias, ele também se declarou católico. 


9 - André Kervella em “Martinès de Pasqually: Una de las fuentes del Régimen Escocés Rectificado”  argumenta que o uso de termos hebraicos, como "Coën", não prova uma origem judaica, pois esses termos eram acessíveis em dicionários da época. Por exemplo, o Dicionário da Língua Santa de Edward Leigh (1703) fornecia para a palavra "cohen" equivalentes como ministro de Deus, sacerdote, príncipe, conselheiro ou pessoa de eminente qualidade. A partir dessas definições, que designam alguém "elevado acima dos outros", Martinès não precisaria de uma grande erudição para adaptar o termo e associá-lo a títulos maçônicos como "Cavaleiro" ou "Eleito".


10 - A patente jacobita era o documento central com o qual Martinès buscava legitimar sua autoridade maçônica. Ele mesmo a apresentou como a origem de sua trajetória, ligando-a ao seu pai, que a teria recebido em Aix-en-Provence em 20 de maio de 1738, com a possibilidade de transmiti-la a ele A patente conferia ao seu pai, e depois a ele, o poder de "dirigir e construir em paz sobre toda a superfície da terra um templo ao G∴A∴”. Em fevereiro de 1763, Martinès fez uma cópia deste documento para entregá-la à Loja La Française em Bordeaux, com quem mantinha boas relações na época.


11 - Algumas fontes descrevem o documento como o reflexo da "torpeza de um homem que gostaria de se impor sem saber como fazê-lo". Os signatários da patente (Rowland, Thomas Combes, Hewer, Wrallaen, Hamilton, Kylington, Kingsson, etc.) são considerados um "time fantasma", pois não foram encontrados em nenhum arquivo jacobita ou em dicionários de viajantes britânicos da época.


12 - A conjuntura religiosa e política de 1738 torna a emissão da patente ainda mais improvável. Em 28 de abril daquele ano, o Papa Clemente XII publicou a bula In eminenti apostolatus specula, proibindo os católicos de frequentarem as Lojas Maçônicas. Poucas semanas antes, o próprio pretendente Jaime III havia pedido a seus partidários que "entrassem em adormecimento" (suspendessem as atividades maçônicas). Andre Kervella argumenta que, embora a ordem não tenha sido seguida por todos, era muito provável que na Espanha católica, onde supostamente servia o regimento do pai de Martinès, os maçons exilados suspendessem suas assembleias.


13 - A carreira de Martinès foi tudo, menos pacífica. As fontes consultadas revelam que, ao contrário da imagem de um mestre incontestável que se tem entre seus atuais adoradores, ele esteve constantemente no centro de polêmicas, enfrentando ceticismo e hostilidade. Sua passagem por Toulouse foi marcada por forte antagonismo por parte de alguns irmãos, onde ele "não foi compreendido pelos Irmãos que lhe deram acolhida". Em Bordeaux, o padrão se repetiu: após um período de "namoro e sedução", a loja La Française passou a questioná-lo, o que o levou a se lamentar amargamente em suas cartas. Essa sucessão de conflitos mostra um homem em constante luta por validação.


14 - A experiência em Toulouse foi particularmente amarga. Circulavam comentários maliciosos sobre sua condição social, sendo descrito como um "simples trabalhador que se diz pintor de carruagens". Uma carta enviada de Toulouse para Bordeaux em 1762 o acusava de ter deixado dívidas em sua passagem pela cidade. O clímax foi sua expulsão da loja Trois Loges Réunies, após uma demonstração de suas "manipulações" teúrgicas ter fracassado e sido considerada um "espetáculo deplorável" por três mestres que a testemunharam.


15 - Em Bordeaux, a história se repetiu quase como um roteiro. Após ser recebido na loja La Française, a desconfiança cresceu. A situação se deteriorou a ponto de a loja decidir que ele e seus discípulos não poderiam mais entrar no templo "decorados com os cordões dos graus sublimes", um claro sinal de rejeição. A hostilidade se espalhou, e a loja L"Amitié Allemande, filha da La Française, também recusou a entrada de dois de seus seguidores. No final, ele se viu isolado, com quase todas as lojas da cidade se opondo a ele.


16 - A presença de Étienne Morin em Bordeaux complicou ainda mais a situação de Martinès. Enquanto Pasqually apresentava um sistema ainda incipiente e de autoridade duvidosa, Morin chegava de Paris em 1762 com o título de Inspetor do Rito de Perfeição. Morin já era uma figura conhecida e respeitada na cidade, onde havia introduzido os "Eleitos Perfeitos" quase vinte anos antes, em 1745. Sua escala de 25 graus já tinha a aprovação dos círculos do Grão-Mestre Clermont em Paris, o que lhe conferia uma credibilidade que Martinès não possuía.


17 - A tensão em Bordeaux escalou para um confronto físico e a intervenção das autoridades. Em fevereiro de 1764, um oficial seguidor de Martinès foi barrado na loja La Française. Ele retornou com reforços, o que gerou um grande tumulto, e alguns maçons chegaram a pensar em "cruzar suas espadas". O incidente foi levado ao Conde de Ségur, tenente do prefeito, que convocou Martinès e seus discípulos para uma severa repreensão. Ele os proibiu de perturbar qualquer loja da cidade, ameaçando Martinès diretamente com prisão e uma denúncia formal à corte caso houvesse reincidência.


I.C.J.M.S. Que a Ordem Prospere!!!

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