Não é nada raro encontrar, entre os irmãos que compõem os quadros do Rito Escocês Retificado aqueles que sustentam existir vínculos diretos entre o “Martinismo” e o sistema maçônico aprovado pelo Convento de Wilhelmsbad em 1782. A maior parte daqueles que sustentam tal tese, confunde - de forma inexplicável - as proposições de Martinez de Pasqually, de Jean Baptiste Willermoz e de Louis Claude de Saint-Martin (quanto a esse último então, a confusão vai além, especialmente quando atribuem diretamente a sua pena percepções de mundo e da alma humana que partem, na verdade, das diversas “ordens esotéricas” originadas a partir do martinismo papusiano).
Ora, é fácil perceber, ao estudar a desastrosa trajetória do esoterismo ocidental a partir do século XVIII, que essa confusão nasce graças ao surgimento de teóricos (geralmente fundadores de “ordens”) que não mediram esforços na tentativa de misturar martinezismo, martinismo e maçonaria de forma a criar um todo sincrético; na maioria das vezes aproveitando-se de certas coincidências e movidos por alguns “interesses específicos” que lhes foram bastante facilitados graças ao pensamento mágico (1), que muitos trazem em si, de conhecer doutrinas secretas que conferem grandes poderes a quem tem o privilégio de as conhecer.
Pois bem, aquilo que normalmente conhecemos como “Martinismo” não carrega em si relação alguma com a maçonaria regular e menos ainda com o Regime Escocês Retificado; aqueles que insistem em enxergar tais relações ou estão mergulhados na confusão acima já descrita e/ou portam alguma dificuldade ao comparar sistemas e perceber-lhes os pontos excludentes, ignorando assim as leis do pensamento e o princípio da não contradição. Outros, há porém, que defendem tal tese apoiados naquilo que chamam de “Martinismo Russo” (proposição completamente falsa). Vejamos os fatos: Após Wilhelmsbad, o que se havia acordado no convento não prosperou nem em França nem na Alemanha, mas sim na Rússia (por um período curto). Em França, porque depois de 1782 até o estouro da revolução a sociedade francesa, mergulhada em seu rancor, não estava voltada para propostas espirituais (apesar da tentativa de resistência que alguns grupos ofereciam aos enciclopedistas). Já na Alemanha, nunca aceitaram a proposta do convento de bom grado - uma reforma francesa - e a maioria das lojas voltou à Estrita Observância até seu desaparecimento. Na Rússia, no entanto, a situação foi diferente; Nicolas Novikoff implementou a Reforma e continuou com a Ordem até 1792, data em que Catarina II proibiu sua atividade devido às pressões vindas de França e do novo governo revolucionário. Ora, acontece que Nicolas Novikoff nutria grande entusiasmo pela figura de Louis Claude de Saint-Martin, o que fez com que o Regime Escocês Retificado recebesse a alcunha de “martinismo” naquelas terras, tal o alardeamento que Novikoff fazia deste filosofo. Todavia, querer usar esse fato para atribuir influência de uma ordem, que só surgiria anos depois, ao Regime Retificado, seria como dizer que a Coca-cola se originou a partir do lançamento da Pepsi… A ordem Martinista, como conhecemos em seus vários desdobramentos, não teve origem nem mesmo a partir de Saint-Martin, tendo sido criada quase cem anos depois do R.E.R. ser proibido na Rússia. De fato, a Ordem Martinista não surge até 1890, tendo sido criada por Papus (Gérard Anaclet Vincent Encausse) e Augustin Chaboseau - entre outras personalidades do meio esotérico da época - objetivando, supostamente, transmitir a iniciação e doutrina de Martinez de Pasqually e de Louis-Claude de Saint-Martin (2) - de quem a ordem recebe o nome. Papus lança mão de algumas ideias existentes no “Tratado de Reintegração dos Seres” (obra inacabada de Pasqually), de algum conhecimento sobre a operacionalidade na “Ordem dos Cavaleiros Maçons Elus Cohen do Universo” e as une a alguns pontos da “doutrina” legada por Saint-Martin em seus escritos pessoais. Trocando em miúdos: Papus apanha restos de refeições anteriores, mistura-as, requenta-as e as serve como caro e refinado banquete… que alguns pagam bem caro para consumir como fina iguaria.
Autores como Eduardo R. Calley e Martin Blanco apontam que o interesse do Martinismo pela Ordem Retificada sempre foi no sentido de instrumentalizá-la; valendo-se dela como ponte para cobrir o vazio de tempo que o separava da Ordem de Pasqually, tentando ganhar com isso uma linha de transmissão e uma legitimidade que - de outra forma - não possui. Nós do Blog Primeiro Discípulo não discordamos de forma alguma dessa análise, mas acrescemos que existe outro elemento a se considerar nessa equação: A vaidade que atrai e alimenta o pensamento mágico… Afinal de contas, é bem mais fácil vender uma imagem de pertencimento a uma ordem por onde passaram sábios, filósofos e nobres do que apenas pensadores ocultistas (por mais bem intencionados que esses pudessem ser)...
A relação entre o R.E.R. e o Martinismo é mais do que gratuita, estabelece-se no fato do fundador da Ordem Retificada, Jean Baptiste Willermoz, junto a Louis-Claude de Saint-Martin, ambos pertencentes aos quadros da Ordem dos Elus Cohen, terem tentado, em esforço conjunto, salvar a mesma de inevitavelmente cair em inatividade após o desaparecimento de Martinez de Pasqually, “cristianizando” os posicionamento heterodoxos de seu antigo mestre. Tal empresa, foi depois abandonada, Willermoz seguiu na elaboração e criação daquilo que viria a ser o Regime Retificado; já Saint-Martin passou a dedicar-se a um caminho solitário de reflexão e prece, dedicou-se a traduzir os escritos de Jacob Boehme e a desenvolver um misticismo sui generis dispensando qualquer favor assistencial de qualquer religião instituída e permanecendo desligado de qualquer ordem fosse maçônica ou não. O fato é que tanto Willermoz como Saint-Martin, abandonaram completamente qualquer pretensão de permanecer com a Ordem dos Elus Cohen, seguindo cada um seu caminho próprio, querer utilizar-se desses personagens para abrir caminho até a Ordem de Pasqually, que é o que interessa aos “ocultistas” do passado e do presente, é apenas uma tentativa de manipulação que, ainda que engane aos menos críticos ou os mais afoitos pelo “maravilhoso”, só traz discórdia e confusão onde deveria reinar esclarecimento e regeneração.
Eduardo R. Calley e Martin Blanco fazem ainda outra observação muito interessante: É nessa ilicitude que alguns enganadores interessados na Ordem Retificada visando unicamente alimentar seus objetivos obscuros, apelam ao “cristianismo esotérico” (como se fosse possível existir um) e tentam reviver a “herança” das posições heterodoxas de Martinez de Pasqually, dando estranhas interpretações aos rituais e instruções do Rito Retificado conduzindo-os a leituras que estão em total desconformidade com os textos aprovados pelo Convento de Wilhelmsbad e com a doutrina cristã ecumênica na qual coexistem as diferentes igrejas cristãs trinitárias.
Bem, o trabalho para o qual a Ordem Retificada incita e anima o homem, imagem e semelhança de Deus, é o de recuperar a semelhança original com seu Criador mediante o estudo dos símbolos, dos emblemas, das alegorias, das máximas, da regra maçônica, por meio de um método introspectivo que em nada se relaciona com ocultismo, magia, teurgia ou invocações a “forças superiores”, angélicas ou não, práticas que não guardam NENHUMA proximidade com a tradição cristã e - muito menos - com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora, e se alguém se apresentar a você, maçom retificado, ostentando uma filiação martinista como se isso o fizesse - de alguma forma - ter maior compreensão do que a sua sobre o Regime ou sobre a maçonaria, lembre ao mesmo que o R.E.R. é um sistema maçônico cavaleiresco cristão absolutamente afastado de práticas teúrgicas, mágicas ou destoantes a sã filosofia cristã… o que, de imediato, afasta toda e qualquer compatibilidade possível entre as duas expressões de pensamento.
Notas:
1 - A expressão “pensamento mágico” é utilizada para descrever a crença segundo a qual certos pensamentos poderiam tornar possível ou inviabilizar a concretização de desejos humanos ou ainda prevenir eventos problemáticos ou desagradáveis (ou mesmo trazer solução para eles). Esse tipo de abordagem psicológica é mais comum nas crianças sendo nos adultos, a persistência deste tipo de pensamento, um indicativo de imaturidade ou de desequilíbrio psicológico. Basicamente o “pensamento mágico” é uma tentativa de fuga das ansiedade e conflitos do dia a dia; enfim, aos desprazeres e vicissitudes tanto do mundo exterior ao homem como também de seu mundo interior. Como se o ato de pensar (ou permanecer em uma linha de pensamento) pudesse explicar, moldar ou controlar a realidade, além de trazer uma suposta causalidade a eventos isolados. O “pensamento mágico” não fica limitado a palavras, estendo-se muitas vezes a atribuição de qualidades a objetos que podem armazenar energias ou a gestos que podem influir no universo exterior ou interior do ser humano (já ouvimos falar que o corte do sinal do aprendiz tem como finalidade “limpar chacra”) trazendo curas e “abrindo caminhos” para as pessoas. O pensamento mágico, no entanto não se limita a pessoas, podendo ser observado em algumas religiões ou grupos sectários - geralmente voltados a esoterismo ou nova era. É sempre muito presente em portadores de certas formas de neuroses, em particular na obsessiva.
2 - Os que leram Pasqually e Saint-Martin sabem que embora convirjam em muitas coisas suas proposições se anulam… sendo que aquilo que era primordial para um (como prova da conquista do sucesso nas operações e, consequentemente, do sucesso da ascensão da alma) era descartado pelo outro como perigoso e inútil (isso só para começar…).
Fontes:
Bettencourt, Estevão - "A Tradicional Ordem Martinista" Revista Pergunte e Responderemos, Nº 534 - Ano: 2006
Calley, Eduardo R. / Blanco, Ramón Marti - "Convesaciones en el claustro"
Patologia do Pensamento Mágico em www.psiqueweb.med.br
I.C.J.M.S.
Que Nossa Ordem Prospere !!!
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