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A Sombra de Orígenes em Pasqually: Entre Influências Filosóficas e Distorções Esotéricas.

Em artigos precedentes, nomeadamente Memória Dirigida por Joseph de Maistre ao Duque de Brunswick e Reflexões sobre o Cristianismo Transcendente em Joseph de Maistre, caminhamos um pouco rumo ao complexo pensamento de Joseph de Maistre e sua profunda concepção sobre a existência de um "cristianismo transcendente". Maistre, em sua obra Do Papa, defende que a verdadeira autoridade cristã não se origina da liberdade humana, mas sim de uma ordem divina, hierárquica e transcendente, o que implica uma visão de cristianismo que não é meramente social ou terrena, mas que transcende as limitações da experiência humana e das instituições terrenas. Essa visão tem sido, de forma recorrente, descontextualizada e invocada de maneira inadequada por muitos irmãos para justificar interpretações tendenciosas e distorcidas acerca não somente da maçonaria cristã. A tese de Maistre sobre o cristianismo transcendente tem sido, de maneira insustentável, resignificada por meio de artimanhas argumentativas que visam a criação e legitimação de um "cristianismo de conveniência" — um cristianismo disforme e elástico, no qual qualquer prática ou doutrina, por mais heterodoxa que seja, encontra acolhimento, sem o devido escrúpulo com a ortodoxia ou com os ensinamentos imutáveis do magistério cristão. Essa interpretação flexível do cristianismo ignora o próprio argumento central de Maistre, conforme exposto em Do Papa (1819), onde ele afirma que a autoridade espiritual da Igreja deve ser irrevogável e independente de qualquer reformulação humana: "A Igreja não é uma criação humana, ela é uma instituição divina, e, como tal, deve ser considerada imutável." (p. 56). Esta versão manipulada e flexível do cristianismo não apenas corrompe e desvirtua a proposta originária de Maistre, mas, ao fazê-lo, obscurece a compreensão genuína do cristianismo e do próprio Regime Escocês Retificado (RER), tornando ainda mais difícil a identificação de suas autênticas convergências com a tradição cristã ortodoxa e prejudicando uma reflexão aprofundada sobre as suas problemáticas internas. Tal distorção, longe de edificar a fé, serve apenas para obscurecer as luzes da verdade e prejudicar a integridade tanto da maçonaria cristã quanto da doutrina que, originalmente, deveria sublinhá-la.


O mesmo fenômeno de descontextualização, observado de forma ainda mais grave, se evidencia no tratamento do pensamento de Orígenes de Alexandria. Orígenes, em sua De principiis e Comentário sobre o Evangelho de João, foi uma figura central na formação do pensamento cristão primitivo, e seu conceito de preexistência do Logos, como exposto no capítulo 1 do De principiis (I.2), não poderia ser mais distante das visões esotéricas que, muitas vezes, têm sido associadas ao cristianismo esotérico de Martinez de Pasqually. A ideia de "Cristo transcendente", proposta por Maistre, tem sido invocada indevidamente como um respaldo para um cristianismo gnóstico ou esotérico. A interpretação e aplicação de tais ideias, quando descontextualizadas, acabam promovendo uma forma de cristianismo que, se for examinado à luz da tradição ortodoxa, torna-se irreconhecível. Uma aplicação igualmente equivocada e problemática do pensamento de Orígenes tem sido empreendida, com o intuito de sustentar uma visão 'esotérica' ou 'gnóstica' do cristianismo. Em sua obra Contra Celsum, Orígenes afirma claramente que "o cristianismo é um sistema de verdades reveladas que não podem ser adaptadas a qualquer interpretação que fuja da revelação das Escrituras" (VIII.32). Essa citação deixa claro que qualquer tentativa de reconstruir um "cristianismo esotérico", apartando-o das Escrituras e da tradição ortodoxa, não só é inconsistente com o pensamento de Orígenes, mas também uma forma de heresia.


Essa distorção, com efeito, decorre, em grande medida, da tentativa de estabelecer um suposto 'diálogo' entre Orígenes e Martinez de Pasqually – um diálogo que, na realidade, jamais ocorreu, cuja fundamentação, longe de ser sólida, não se sustenta diante de uma análise mais cuidadosa. O objetivo desta reflexão é, portanto, esclarecer as imprecisões subjacentes a essa aproximação, evidenciando as inconsistências que a tornam insustentável à luz de uma interpretação fiel e rigorosa dos textos originais.


Antes de mais nada, é importante ressaltar que o que distingue um verdadeiro diálogo entre autores não é a mera coincidência de temas ou a utilização de conceitos paralelos. Um diálogo genuíno se configura por meio de referências explícitas, influências diretas e pela reelaboração coerente das ideias em novos contextos. Além disso, para que tal diálogo seja legítimo, é imprescindível que ocorra dentro de um quadro histórico plausível, que leve em consideração a possibilidade real de um autor ter tido acesso às obras do outro, resultando, assim, em uma efetiva influência intelectual.


No caso específico de Martinez de Pasqually e Orígenes de Alexandria, as condições necessárias para um verdadeiro diálogo entre seus pensamentos são, de fato, inexistentes. Orígenes, um dos maiores teólogos da patrística cristã, teve um papel central na formação do cristianismo primitivo, sendo fundamental na definição do dogma trinitário e na articulação da teologia cristã primitiva. Suas reflexões, que emergiram da conjugação de uma vasta erudição filosófica e teológica disponível em sua época, estabeleceram alicerces que perduram até os dias de hoje. Orígenes escreveu extensivamente sobre a relação entre a humanidade e o divino, especialmente em suas obras De principiis e Comentário sobre o Evangelho de João, onde ele explorou o conceito da preexistência do Logos e sua consubstancialidade com o Pai, conceitos que se tornaram centrais para a teologia cristã. Em De principiis (I.3), Orígenes afirma: "O Logos, antes de ser feito carne, é a essência divina que sempre esteve presente no mundo, sendo o princípio de toda criação", evidenciando sua concepção cristocêntrica e trinitária.


Ao contrário, Martinez de Pasqually desenvolveu uma doutrina essencialmente esotérica, que se distancia de maneira substancial e, em seu contexto original, irreconciliável da ortodoxia cristã. A concepção de Cristo, a soteriologia e a visão de Deus propostas por Pasqually se contrapõem frontalmente aos princípios fundamentais do pensamento de Orígenes, tornando impossível qualquer tentativa de estabelecer um diálogo genuíno e frutífero entre as duas correntes. A disparidade entre suas doutrinas não se limita a divergências periféricas, mas atinge as questões centrais da teologia cristã, o que desqualifica qualquer alegada aproximação intelectual entre eles.


Nas linhas que se seguem, procuraremos demonstrar — ao menos de forma introdutória — como a tentativa de aproximar os pensamentos de Pasqually e Orígenes não representa apenas um equívoco interpretativo, mas uma distorção substancial dos conceitos fundamentais de ambos os pensadores. Ao examinar partes das doutrinas de cada um e suas respectivas influências, buscaremos evidenciar as razões pelas quais um "diálogo" entre suas obras é, na realidade, uma impossibilidade tanto teológica quanto filosófica.


A ideia de que Martinez de Pasqually pudesse estabelecer um diálogo com Orígenes de Alexandria é, à primeira vista, intrigante. Ambos os pensadores se destacam por seus sistemas teológicos e filosóficos complexos, mas ao analisar mais profundamente suas doutrinas, torna-se evidente que qualquer tentativa de aproximação entre eles esbarra em diferenças fundamentais de perspectiva, contexto histórico e objetivos teológicos. Para compreender por que tal diálogo é essencialmente impossível, é necessário explorar não apenas as concepções de cada autor, mas também os contextos em que suas ideias se desenvolveram e as influências que moldaram suas respectivas visões de mundo.


Orígenes, uma das figuras centrais da teologia cristã primitiva, foi pioneiro na sistematização do pensamento cristão. Sua teologia trinitária buscava articular a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo de maneira que preservasse tanto a unidade divina quanto a distinção entre as Pessoas. Orígenes enfatizou a eternidade do Logos e sua consubstancialidade com o Pai, conceitos que seriam posteriormente refinados e incorporados ao dogma cristão nos concílios ecumênicos, como o Concílio de Nicéia (325) e o Concílio de Constantinopla (381). Além disso, ele desenvolveu uma exegese alegórica que buscava revelar os significados espirituais subjacentes aos textos bíblicos, vendo nas Escrituras um caminho para a compreensão das realidades divinas. Sua visão escatológica também merece destaque, pois ele propôs um universalismo redentor no qual todos os seres, incluindo os anjos caídos, seriam eventualmente reconciliados com Deus. Essa visão, embora controversa na época, revelou a profundidade do seu desejo de reconciliação universal, característica do pensamento cristão primitivo.


Em contraste, Martinez de Pasqually emerge como uma figura do esoterismo cristão do século XVIII, apresentando uma teosofia profundamente influenciada por elementos cabalísticos e gnósticos. Seu sistema, articulado principalmente no Tratado da Reintegração dos Seres, descreve uma cosmogonia emanacionista onde o universo é visto como resultado de sucessivas emanações da divindade. Pasqually concebe a queda como um evento que corrompeu a ordem original, exigindo um processo de reintegração conduzido pelo homem por meio de operações teúrgicas. Sua soteriologia é marcadamente ativa: ao contrário da dependência da graça divina enfatizada pela ortodoxia cristã, Pasqually atribui ao homem um papel crucial na redenção, tornando-se coautor de sua própria salvação e da restauração do universo. Essa visão de um ser humano com poder para operar a redenção é uma das principais divergências com a teologia cristã tradicional, que entende a graça como o principal agente da salvação.


Portanto, a tentativa de reconciliar as doutrinas de Orígenes e Pasqually é, na melhor das hipóteses, um equívoco. Ao ignorar as diferenças filosóficas e teológicas fundamentais entre eles, perde-se de vista o significado genuíno das duas tradições e se cria uma versão sincrética que dilui as verdades essenciais do cristianismo. A verdadeira continuidade entre o cristianismo esotérico de Pasqually e o cristianismo ortodoxo de Orígenes é, de fato, impossível, e qualquer tentativa de "dialogar" entre eles não passa de uma tentativa ilusória de manipular o pensamento para fins próprios, desvirtuando a pureza da tradição cristã.


Tendo exposto as considerações iniciais, voltamos agora nossa atenção para algumas das teses que, com o intuito de estabelecer um suposto diálogo entre o pensamento de Pasqually e o de Orígenes, foram suscitadas ao longo do tempo. Não se faz necessário, contudo, tratar de todas as propostas levantadas, pois uma análise cuidadosa das mais relevantes será suficiente para revelar a irreconciliabilidade entre as doutrinas de ambos. Em vez de diluirmos nossa argumentação em um vasto número de suposições, optamos por concentrar-nos em algumas ideias centrais que têm sido evocadas como tentativa de construir uma conexão entre os dois pensamentos. Procederemos, assim, a uma breve exploração dessas teses, para, em seguida, submetê-las à luz de uma análise crítica que evidenciará as profundas divergências teológicas e filosóficas que os distanciam, tornando, portanto, impossível qualquer genuíno ponto de contato entre suas concepções.


Primeira Tese: A concepção de Pasqually de uma criação por necessidade é suficiente para demonstrar evidência da influência de Orígenes sobre Pasqually.


A tese de uma criação efetuada por "necessidade" em Martinez de Pasqually não é suficiente, por si só, para demonstrar uma influência direta e inequívoca de Orígenes sobre o líder Cohen. Embora a ideia de criação necessária, como veremos, apresente paralelos com algumas especulações filosófico-teológicas de Orígenes, ela não se restringe à sua teologia, encontrando raízes em tradições mais amplas, como o neoplatonismo, a cabala e o gnosticismo, que também exerceram influência sobre os influenciadores de Pasqually. Assim, para sustentar a hipótese de uma influência direta, seria imprescindível demonstrar pontos de contato específicos que transcendem a mera semelhança superficial entre as duas doutrinas. Neste sentido, uma investigação mais profunda sobre as origens dessas concepções e suas respectivas variações em Pasqually e Orígenes é fundamental.


Pontos de Convergência e Divergência


Criação por Necessidade:


  • Orígenes: Em sua teologia, a criação por necessidade aparece de forma implícita, especialmente quando Orígenes especula sobre a eternidade da criação e a ação contínua de Deus como criador. Contudo, essa necessidade não é compreendida como um constrangimento externo ou uma falta intrínseca em Deus, mas como uma expressão da bondade divina, que se estende para a criação por pura generosidade e amor. Deus cria, portanto, não porque precise fazê-lo, mas porque sua bondade infinita o impele a criar, de maneira livre e desinteressada.

  • Pasqually: Em contraste, a necessidade em Pasqually adquire um caráter mais vinculado ao conceito de emanação divina, em que a criação surge como uma consequência inevitável do ser divino, sem a liberdade plena de escolha do Criador. Esta concepção, de raiz neoplatônica, enxerga a criação não como uma ação livre de Deus, mas como uma necessidade cósmica resultante de sua própria natureza. A criação, portanto, é vista como uma "necessidade" imposta por uma dinâmica interna do ser divino, mais próxima de uma inevitabilidade esotérica do que de uma expressão livre do amor divino, como em Orígenes.


Visão Cosmogônica:


  • Orígenes: A cosmogonia de Orígenes é fortemente moldada pela ideia do Logos como intermediário entre o Pai e o mundo. Ele defende uma criação que distingue claramente o Criador da criação, mantendo a pureza e a transcendência do divino. A criação é entendida como uma ação livre do Logos, sem confusão entre o divino e o criado.

  • Pasqually: Por outro lado, a cosmogonia pasqualiana não mantém a mesma clareza entre o divino e o criado. A ideia de emanação divina, característica do neoplatonismo, implica uma relação mais estreita entre o Criador e a criação, com a transição do ser divino para o mundo criado não sendo tão rígida ou bem definida. Isso aproxima Pasqually das doutrinas gnósticas ou cabalísticas, que veem a criação como uma extensão ou manifestação do próprio ser divino.


Escatologia e a Reintegração dos Seres:


  • Orígenes: Em Orígenes, a escatologia é marcada pela doutrina da apocatástase, a restauração final de todas as coisas. Todos os seres, eventualmente, seriam reconciliados com Deus, independentemente de seu estado atual. Essa reconciliação universal é um reflexo da misericórdia divina e da liberdade das criaturas em se voltarem para Deus.

  • Pasqually: A ideia de reintegração em Pasqually, embora também implique um retorno ao estado original, é fundamentalmente diferente na forma como é concretizada. Para Pasqually, a reintegração é vista como um processo ativo e teúrgico, onde a ação humana e a utilização de rituais esotéricos desempenham um papel crucial. Essa diferenciação é importante, pois a ênfase no esforço humano e no poder dos rituais reflete uma compreensão mais mecânica e menos universalista da salvação, em contraste com a visão mais inclusiva e baseada na graça de Orígenes.


Influências Contextuais:


  • Orígenes: Sua teologia é profundamente enraizada na tradição cristã, particularmente na filosofia helenística, especialmente no platonismo. Orígenes buscava sempre manter a fidelidade ao cristianismo ortodoxo, dialogando com as correntes filosóficas contemporâneas para esclarecer e aprimorar a doutrina cristã.

  • Pasqually: Em comparação, Pasqually foi fortemente influenciado por tradições esotéricas, como a cabala judaica, o gnosticismo e o neoplatonismo renascentista. Essas influências o distanciam da teologia cristã ortodoxa, especialmente no que tange à sua abordagem sobre a criação, a salvação e a natureza de Deus. O misticismo de Pasqually, portanto, está mais alinhado com essas correntes esotéricas do que com a visão cristã tradicional de Orígenes.


Avaliação da Influência


Embora a ideia de criação por necessidade seja um ponto de possível convergência entre Pasqually e Orígenes, ela não é exclusiva de nenhum deles. A noção de uma criação necessária ou inevitável está presente em várias tradições filosóficas e religiosas, como o neoplatonismo, a cabala e o gnosticismo, que também exerceram considerável influência sobre o pensamento de Pasqually. Para que se possa afirmar uma influência direta de Orígenes sobre Pasqually, seria necessário identificar elementos adicionais, tais como:

  • Citações ou referências diretas às obras de Orígenes no pensamento de Pasqually, algo que, até o momento, não foi documentado de maneira conclusiva.

  • Paralelos mais específicos entre as doutrinas teológicas de Orígenes e as de Pasqually, além da mera coincidência na ideia de uma criação necessária.

  • Conexões documentadas entre o círculo intelectual no qual Pasqually estava inserido e a recepção das ideias de Orígenes na França do século XVIII.

Sem essas evidências, é mais plausível afirmar que ambos os pensadores foram influenciados por fontes comuns, como o neoplatonismo e outras correntes místicas e esotéricas, do que sustentar uma relação direta entre seus pensamentos.


Conclusão


Em suma, a tese de que uma criação efetuada por 'necessidade' é suficiente para demonstrar uma influência direta e determinante de Orígenes sobre Pasqually é, de fato, insustentável. Embora existam alguns pontos de convergência, como o conceito de uma criação inevitável, esses elementos estão amplamente presentes em diversas correntes filosóficas e religiosas, não sendo exclusivos de Orígenes. Além disso, as profundas divergências entre as concepções teológicas e cosmológicas de ambos demonstram que qualquer tentativa de vincular o pensamento de Pasqually ao de Orígenes como uma fonte primária e definidora de seu esoterismo carece de fundamentos sólidos. Embora uma relação indireta, mediada por tradições mais amplas como o neoplatonismo, não possa ser completamente descartada, ela é qualitativamente diferente da apropriação sofismática e descontextualizada de que são alvo tanto o pensamento de Maistre quanto o de Orígenes, conforme criticado inicialmente. Essa relação indireta, baseada em influências difusas e compartilhadas, não deve ser interpretada como uma validação das tentativas de se construir artificialmente um 'cristianismo esotérico' à revelia da tradição ortodoxa.


Segunda Tese: Orígenes foi o único dos primeiros doutores cristãos que defendeu que o mundo foi criado por "necessidade".


A tese de que Orígenes foi o único dos primeiros doutores cristãos a defender que o mundo foi criado por "necessidade" não se sustenta. Embora Orígenes tenha sido um dos mais proeminentes a explorar essa ideia, a "necessidade" que ele propôs é diferente daquela comumente entendida, não devendo ser interpretada como uma limitação imposta ao Criador, mas sim como uma característica intrínseca à bondade infinita de Deus. A questão da criação "por necessidade" é mais complexa e envolve uma análise cuidadosa da terminologia e das distinções teológicas feitas pelos Padres da Igreja. Outros pensadores patrísticos também lidaram com a ideia de uma criação derivada de uma necessidade, mas com ênfases e compreensões que variam substancialmente.


Pontos de Convergência e Divergência


A Teologia de Orígenes sobre a Criação:


  • Orígenes: Orígenes argumentava que Deus cria continuamente o mundo, não como um ato impelido por necessidade externa, mas porque tal ato é um reflexo da bondade infinita de sua natureza. Para ele, a criação não era uma escolha contingente, mas uma expressão inevitável da perfeição divina. Ele postulava que a criação emanava da bondade de Deus de maneira natural e necessária, mas, em um sentido teológico, essa "necessidade" não se configurava como uma coerção, e sim como uma expressão da abundância e da plenitude do ser divino.

  • Liberdade Divina: Orígenes insistia que, embora a criação fosse uma consequência inevitável da bondade divina, ela não violava a liberdade de Deus. A criação, nesse sentido, seria o fruto de uma liberdade absoluta, pois decorre da generosidade e do amor infinitos de Deus, e não da necessidade de preencher uma falta ou lacuna. Essa visão não coloca Deus como algo limitado ou forçado a criar, mas sim como alguém cuja perfeição se manifesta, de maneira livre e espontânea, no ato criador.


Outros Padres da Igreja e a Ideia de Criação:


  • Gregório de Níssa: Gregório de Níssa, assim como Orígenes, enfatiza que a criação é uma manifestação da bondade divina. Para ele, a criação do mundo é uma expressão natural da perfeição de Deus, e essa ação criadora é uma consequência da própria natureza divina. Embora Gregório não use explicitamente o termo "necessidade", ele sublinha que o ato criador é uma extensão da bondade de Deus, e que a criação é, em última análise, uma consequência do ser divino, da mesma forma que o fogo emana calor. Essa concepção tem algumas semelhanças com a ideia de necessidade de Orígenes, mas mantém uma maior distância da noção de compulsão ou limitação.

  • Santo Agostinho: Santo Agostinho rejeita qualquer forma de "necessidade" no sentido de uma coerção externa sobre Deus. Para ele, a criação é um ato livre, pois Deus cria para manifestar sua glória. Contudo, é possível interpretar a forma como Agostinho aborda a criação como uma necessidade intrínseca derivada de sua perfeição. Em sua visão, a necessidade não é de uma coerção impessoal, mas um reflexo da liberdade divina, onde o Criador, sendo perfeito, tem a necessidade de criar por uma abundância de bondade que deseja se espalhar. Assim, Agostinho mantém a liberdade divina, mas entende a criação como um movimento natural e desejado da perfeição de Deus.

  • Clemente de Alexandria: Clemente, que foi mentor de Orígenes, também explora a ideia de que Deus cria por sua bondade. Embora Clemente seja menos sistemático em sua abordagem, ele sugere que a criação surge de uma necessidade interna, que decorre da plenitude do ser divino. No entanto, tal necessidade é entendida de maneira mais suave, como uma consequência da natureza amorosa e generosa de Deus, e não como uma imposição externa.


Distinções Fundamentais:


  • Necessidade Intrínseca vs. Liberdade Divina: Em todos esses pensadores patrísticos, é essencial ressaltar que a "necessidade" associada ao ato criador não deve ser entendida como uma restrição ou compulsão sobre a liberdade divina. A criação é apresentada como uma ação livre e soberana de Deus, onde a necessidade é intrínseca à natureza de Deus, mas sem limitar sua liberdade ou autonomia. A ideia de que Deus "precisaria" criar para satisfazer alguma carência é totalmente afastada; ao contrário, a criação é um reflexo de sua superabundância de bondade.

  • Heresias Gnósticas e o Neoplatonismo: É importante também notar que a ideia de uma criação por necessidade foi, em algumas correntes gnósticas, associada a um conceito de criação falha ou defeituosa. Os gnósticos viam o mundo como fruto de uma necessidade imperfeita e, por vezes, um erro cósmico. Em contraste, os Padres da Igreja, como Orígenes e seus sucessores, viam a criação como o fruto de uma ação livre e bondosa de Deus, que não estava sujeita a falhas ou carências.


Avaliação da Influência


Orígenes não foi o único doutor cristão primitivo a sugerir que a criação decorre de uma necessidade divina. Entretanto, ele é o mais notável por articular essa ideia com maior clareza, influenciado pelas correntes filosóficas neoplatônicas. A "necessidade" em Orígenes, contudo, não implica uma coerção ou limitação externa a Deus, mas uma necessidade interna que emerge de sua infinita bondade e perfeição.


Conclusão


Em suma, a tese de que Orígenes foi o único a defender a criação por necessidade é insustentável. Outros grandes teólogos patrísticos, como Gregório de Níssa, Agostinho e Clemente de Alexandria, também abordaram questões semelhantes, mas sempre com a ênfase de que a criação é um ato livre e espontâneo, que não diminui a liberdade de Deus. O conceito de necessidade, portanto, é qualificado nesses pensadores, afastando-se de qualquer implicação de uma criação compulsiva ou falha, e reafirmando a ideia de que a criação é, em última instância, um ato de generosidade e amor divinos.


Terceira Tese: Orígenes é uma fonte teórica direta no pensamento de Martinez de Pasqually.


A tese de que Orígenes pode ser considerado uma fonte teórica direta para o pensamento de Martinez de Pasqually é insustentável. Não há evidências históricas ou textuais que comprovem que Pasqually tenha estudado diretamente as obras de Orígenes. Embora algumas semelhanças entre os dois pensadores possam ser identificadas, especialmente em temas como criação, queda e reintegração, essas convergências são mais bem explicadas por influências indiretas, como o neoplatonismo e outras tradições esotéricas que permeavam o pensamento de Pasqually, em vez de um contato direto com a obra de Orígenes.


Pontos de Convergência e Divergência


Acesso aos Textos de Orígenes no Século XVIII:


  • Orígenes: Durante o século XVIII, os textos completos de Orígenes estavam longe de ser amplamente acessíveis. Na época, grande parte de sua obra estava perdida ou restrita a traduções fragmentárias, muitas das quais não estavam ao alcance de autores como Pasqually. Este último não era um teólogo sistemático nem um estudioso acadêmico, e seu envolvimento com fontes teológicas antigas era, no máximo, indireto.

  • Pasqually: Pasqually não era um teólogo sistemático nem um estudioso acadêmico, e seu envolvimento com fontes teológicas antigas era, no máximo, indireto. Além disso, Orígenes havia sido condenado como herege no Segundo Concílio de Constantinopla (553), em razão de suas doutrinas especulativas, como a apocatástase, o que dificultava ainda mais a circulação de suas ideias entre círculos cristãos ortodoxos.


Falta de Referências Diretas a Orígenes:


  • Orígenes: Não se esperaria, em uma análise da teologia de Orígenes, encontrar referências diretas a ele em círculos esotéricos, dado seu status controverso.

  • Pasqually: Nos escritos de Martinez de Pasqually, incluindo o Tratado da Reintegração dos Seres, não há menções explícitas a Orígenes ou a qualquer uma de suas obras. Se Orígenes tivesse sido uma influência direta para Pasqually, seria de se esperar que o pensador esotérico se referisse ao teólogo alexandrino em seus textos. No entanto, Pasqually preferia uma abordagem que misturava tradições orais e esotéricas, distantes da sistemática teológica cristã e, por isso, não recorreu às fontes escritas do cristianismo primitivo de forma tradicional.


Convergência de Ideias por Influências Comuns:


  • Orígenes e Pasqually: Embora as ideias de Orígenes e Pasqually compartilhem certas semelhanças — como a visão de uma hierarquia espiritual e a concepção de um retorno dos seres ao Criador (a reintegração em Pasqually e a apocatástase em Orígenes) — essas convergências podem ser explicadas por influências comuns, como o neoplatonismo.

  • Neoplatonismo: O neoplatonismo foi um sistema filosófico que teve grande impacto nas correntes de pensamento esotérico da época de Pasqually, o que explica o surgimento de ideias semelhantes, ainda que em contextos e com objetivos filosóficos distintos. Esse fenômeno de convergência ideológica ocorre frequentemente em ambientes filosóficos e esotéricos, onde as ideias circulam sem um vínculo direto com a tradição cristã ortodoxa de Orígenes.


Diferenças Fundamentais de Contexto e Metodologia:


  • Orígenes: Orígenes era um teólogo cristão sistemático, trabalhando dentro dos limites da ortodoxia cristã primitiva, ainda que suas ideias fossem eventualmente consideradas heréticas. Sua metodologia buscava compreender a criação e a salvação de uma perspectiva teológica e espiritual.

  • Pasqually: Pasqually desenvolveu um sistema esotérico que combinava práticas cristãs com rituais ocultistas e elementos mágicos, distanciando-se significativamente do pensamento cristão tradicional. Sua abordagem sincrética e esotérica introduziu práticas místicas como meio para a reintegração, o que não se alinha com a teologia de Orígenes.


Influências Esotéricas e Não Cristãs em Pasqually:


  • Pasqually: Ao contrário de Orígenes, Pasqually absorveu conceitos que não têm paralelo no pensamento cristão ortodoxo, como o uso de práticas mágicas para alcançar a reintegração espiritual. Estas práticas revelam uma grande diferença de fontes: enquanto Orígenes se manteve firme na tradição cristã, ainda que especulativa, Pasqually foi profundamente influenciado por correntes filosóficas e esotéricas que permeavam seu tempo, muitas das quais estavam em desacordo com a teologia cristã ortodoxa.


Avaliação da Influência


As semelhanças entre Orígenes e Pasqually, como a visão de uma queda e um retorno à perfeição divina, devem ser atribuídas mais a influências filosóficas e esotéricas compartilhadas, como o neoplatonismo, do que a uma influência direta do pensamento de Orígenes sobre Pasqually.


Conclusão


Em suma, a tese de que Orígenes é uma fonte teórica direta no pensamento de Martinez de Pasqually é insustentável. O autor esotérico desenvolveu seu sistema dentro de um ambiente intelectual que mesclava conceitos cristãos e ocultistas, distantes do cristianismo ortodoxo que Orígenes defendia. Portanto, é incorreto afirmar que Orígenes foi uma fonte teórica direta para o pensamento de Pasqually.


Quarta Tese: Orígenes afirma, assim como Martinez de Pasqually depois dele, que antes da Queda as "almas" subsistiam no seio do Princípio, com o qual eram uma mesma "substância".


A tese que aponta uma semelhança entre as doutrinas de Orígenes e Martinez de Pasqually sobre a ideia das almas antes da Queda, sugerindo que ambas partilham a concepção de que as almas existiam em unidade com o Princípio (Deus), não resiste a uma análise mais aprofundada. Embora haja uma aparente convergência na ideia de uma unidade pré-queda, as concepções de ambos sobre essa unidade e sobre a queda das almas se desenvolvem em contextos teológicos e filosóficos profundamente distintos. Essa convergência deve ser analisada levando em consideração as diferenças fundamentais nas ontologias e metodologias de cada autor.


Pontos de Convergência e Divergência


Orígenes e a Unidade das Almas com Deus:


  • Orígenes: Orígenes, um dos principais teólogos cristãos da Antiguidade, é conhecido por suas doutrinas especulativas, especialmente em relação à natureza das almas antes da criação do mundo material. Segundo Orígenes, as almas existiam como intelectos puros, ou logika (do grego noes), em uma unidade íntima com Deus. Essa unidade, no entanto, não é de identidade substancial, mas sim de proximidade e participação espiritual na essência divina.

  • Causa da Queda: Orígenes propõe que as almas, por um ato de liberdade, se afastaram de Deus, o que resultou em sua queda. O mundo material seria, portanto, um meio de purificação e de retorno a Deus. Esse afastamento da proximidade essencial com o Criador gerou a necessidade de um processo de restauração, mas sempre mantendo a distinção ontológica entre o Criador e a criatura. A queda não implicaria uma perda total da natureza das almas, mas sim um desvio temporário que deveria ser corrigido através do retorno à comunhão com Deus.

  • Natureza da Unidade: Embora Orígenes sugira uma relação próxima entre as almas e Deus, ele nunca afirma que as almas compartilham a substância divina. A unidade que ele descreve é mais relacional e espiritual do que ontológica, com as almas sendo "semelhantes" a Deus, mas sempre subordinadas à Sua supremacia.


Martinez de Pasqually e a Substância das Almas:


  • Pasqually: Martinez de Pasqually, por outro lado, apresenta uma visão que se aproxima mais de uma concepção monista ou emanacionista. Ele ensina que antes da queda, as almas eram "substâncias espirituais", emanadas diretamente de Deus e compartilhando uma unidade substancial com Ele.

  • Unicidade Substancial: Pasqually parece ir além de Orígenes ao afirmar que as almas não apenas estavam em comunhão com Deus, mas realmente compartilhavam da mesma substância divina. Para ele, as almas são, por sua natureza, emanações de Deus, e sua queda ocorre quando essas almas perdem essa perfeição e se distanciam do Criador.

  • Causa da Queda: A queda em Pasqually é descrita de maneira mais cosmológica, quase como um desequilíbrio espiritual que afeta a ordem universal. Esse desequilíbrio resulta na deterioração das almas e no distanciamento delas de sua origem divina, necessitando de um processo de reintegração.

  • Finalidade: A reintegração das almas, em Pasqually, é um processo ritualístico esotérico que busca restaurar essa unidade original com Deus. Diferente de Orígenes, que vê o retorno a Deus como um processo moral e espiritual através do conhecimento e do amor, Pasqually propõe um caminho que envolve práticas mágicas e esotéricas específicas, com rituais destinados a restaurar a perfeição das almas.


Diferenças Fundamentais:


  • Perspectiva Ontológica:

    • Orígenes: Preserva a distinção entre Criador e criatura, afirmando que as almas são "semelhantes" a Deus, mas não da mesma substância.

    • Pasqually: Adota uma visão mais monista, onde as almas são vistas como emanadas da mesma substância divina.

  • Metodologia:

    • Orígenes: Baseia sua teologia em uma abordagem filosófica e teológica cristã, com ênfase na purificação das almas através do conhecimento e da ascese moral.

    • Pasqually: Fundamenta suas doutrinas em práticas esotéricas e rituais, combinando o cristianismo com influências místicas e ocultistas, como a magia e a cabala.

  • Finalidade do Processo de Retorno:

    • Orígenes: Para Orígenes, o retorno das almas a Deus é um processo espiritual e moral, baseado em purificação intelectual e no amor a Deus.

    • Pasqually: Para Pasqually, a reintegração das almas é um processo esotérico e ritualístico, que envolve práticas secretas para restaurar a unidade original com Deus.


Avaliação da Influência


A ideia de que as almas, antes da queda, existiam em unidade com Deus é uma semelhança superficial entre Orígenes e Pasqually. As concepções de ambos sobre essa unidade e sobre a queda das almas se desenvolvem em contextos teológicos e filosóficos profundamente distintos.


Conclusão


Em suma, a tese de que Orígenes e Pasqually compartilham a mesma concepção sobre a subsistência das almas no seio do Princípio antes da queda é insustentável quando se aprofunda a análise. Orígenes mantém uma distinção clara entre o Criador e a criatura, enquanto Pasqually adota uma visão mais monista e esotérica. Essa diferença é crucial, pois implica na maneira como ambos entendem o processo de retorno das almas a Deus, que em Orígenes se dá por meio de um caminho espiritual e moral, enquanto em Pasqually se dá por meio de rituais esotéricos. Portanto, a convergência é apenas aparente, e as divergências fundamentais em suas ontologias e metodologias impedem que se estabeleça uma relação de influência direta.


I.C.J.M.S.

Que Nossa Ordem Prospere!!!



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