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Sobre Pasqually e Sua Obra

Atualizado: 16 de out. de 2020

Raramente pareceres tão contraditórios foram emitidos a respeito de um iniciado e sua obra como no caso de Martinez de Pasqually. A maior parte delas surgidas de confusões inexplicáveis entre o Teurgo de Bordeaux e seu secretário Louis Claude de Saint-Martin, o Filósofo desconhecido (outro em torno do qual, diga-se de passagem, faz-se também gigantesca confusão, especialmente quando confundem aquilo que saiu diretamente de sua pena com as diversas “ordens esotéricas” originadas - diretamente ou não - a partir do martinismo papusiano).


Tem-se sustentado que Martínez de Pasqually teria sido discípulo de Emanuel Swedenborg (1) ou, muito mais frequentemente, que era um “cabalista” (sem maiores adjetivações), quando, se assim fosse, teria sido mais correto classificá-lo de “cabalista cristão” em razão de suas doutrinas e mais especialmente de sua Teurgia, sobretudo a do grau supremo de sua Ordem.


Na verdade, estudando as duas principais fontes doutrinárias deixadas por Martinez de Pasqually, seu “Tratado de Reintegração dos Seres” e seu epistolário, de forma alguma tais afirmações se sustentam (2). René Guénon, de maneira indiscutível, observa a tal respeito que o simples fato de ter bebido de uma fonte hebraica, o que não se nega (3), de forma alguma é suficiente para tornar Martinez de Pasqually um “cabalista”, o que não teria contrariado em nada o esoterismo judaico tradicional (4), posteriormente cristianizado na Europa renascentista, mas que deve se constatar como fato objetivo. A Árvore da Vida, os Sefirot e outros elementos típicos da Cabala, ou não aparecem no decorrer da obra de Martinez ou são raramente mencionados; quanto ao emprego dos números, de forma alguma representa elemento probatório para sustentar tal afirmação, pois o sentido que lhes atribui Pasqually, está muito distante do da Cabala, sendo talvez mais acertado buscar sua origem no pitagorismo.


Neste caso, achamos mais correto fazer coro a René Guénon (reconhecendo sua autoridade no assunto) considerando que as doutrinas de Martinez de Pasqually constituiriam uma “gnose” (5) (no sentido estritamente etimológico da palavra, um “conhecimento”), sem dúvida alguma judaico-cristão, de provável origem sefardita, recebida provavelmente em algum ponto do norte da África (6) mas não um sistema cabalístico profundo.


O nome original da obra de Pasqually era “A Reintegração e a Reconciliação de Todo Ser Espiritual Criado Com Suas Primeiras Virtudes, Forças e Potências na Alegria Pessoal Que Todo Ser Gozará Individualmente Na Presença do Criador”, este longo título é por si só um esboço da teurgia proposta por Martinez. Posteriormente, esse título foi mudado para “Tratado de Reintegração dos Seres em Suas Primeiras Propriedades, Virtudes e Potências Espirituais e Divinas”, que igualmente “anunciava” os propósitos da teurgia de Dom Martinez.


Segundo as doutrinas expostas no Tratado, toda a história da humanidade, mais particularmente a do povo judeu, seriam explicadas por dois fatos: As consequências do pecado original e a divisão fundamental do gênero humano em duas classes distintas: Os Réprobos e os Eleitos. Deus teria exalado Adão para ser o guardião da prisão onde anjos rebeldes haviam sido presos após a queda. Tal prisão era o mundo material, criado exclusivamente com essa finalidade. Adão, revestido de uma forma “gloriosa” (luminosa), tinha sob suas ordens os espíritos de categoria mais elevada e tinha poder sobre toda a Criação.


Adão porém, seduzido pelos pérfidos enganos dos espíritos perversos, arrogou-se direitos próprios de Deus, tratando de dar a si mesmo uma posteridade “espiritual”, ou seja, emanar, por sua vez, sem a cooperação divina, seres semelhantes a si mesmo. A punição por essa falta foi dupla: a empresa imprudente produziu apenas uma forma material, "Hewa" (Eva); e aprisionado a partir de então em um corpo material, Adão teve que habitar sobre a terra, vivendo dali em diante “em privação”, ou seja, sua comunicação direta com Deus foi cortada, ficando então, a partir daquele ponto, exposto as emboscadas e aos ataques dos maus espíritos que ele antes dominava.


A humanidade surge das relações que Adão decaído manteve com “Hewa” e o destino dos homens na vida futura, qualquer que seja a raça a que pertençam, está ligado diretamente a sua descendência; se de Caim ou se de Seth. A posteridade do primeiro está condenada a permanecer eternamente condenada a viver em “privação; já a do segundo pode ansiar por uma reconciliação” que a colocará, depois de passarem pelas provas deste mundo e das esferas superiores, em contato direto com Deus com quem se unirá “no final dos tempos”.


A origem divina do Primeiro Homem lhe havia outorgado um caráter indelével que a queda, embora o houvesse convertido em algo “menor”, não havia podido apagar completamente e diante do arrependimento de Adão, consente o Senhor em manifestar-Se por Sua palavra e reconciliar-Se com Sua criatura.


A posteridade de Seth (também chamados “os justos”, tais como Noé, Abraão, Jacó, Moisés e Profetas como Elias) havia herdado, segundo o testemunho dos Livros Sagrados, o privilégio de receber comunicações do Altíssimo, por intermédio dos espíritos do mundo celeste e supra-celeste, que a ela se revelavam para falar-lhe em nome do Eterno. O exemplo dos “Menores Eleitos” mostrava que, por seu intermédio, os “Menores Espirituais” ou ainda “Espíritos Menores” (a posteridade de Seth), podiam ser objeto de favores de natureza semelhante.


A manifestação de um desses espíritos “reconciliadores” ao mesmo tempo que anunciava a beatitude final, era a condição necessária da salvação, pois marcava ao “Menor” favorecido pela presença com um “caráter” ou selo angélico. A “Reconciliação” era o estado preliminar e obrigatório que precedia a “Regeneração” que depois da morte física do “Menor” e da passagem sucessiva pelas esferas superiores, lhe daria acesso ao mundo supra-celeste do qual a queda de Adão o havia exilado.


Conforme a cosmologia de Martinez de Pasqually, o mundo “celeste” era aquele em que evoluíram os astros e, portanto, fazia parte da criação material; enquanto que o mundo supra-celeste era habitado por espíritos de alto escalão que viviam no “Círculo da Divindade”. Todo homem desejoso de saber neste mundo qual seria seu destino ao abandonar a vida material devia então esforçar-se para receber esta “prova certa” de sua “Reintegração”, pelo menos parcial, nas “propriedades, virtudes e potências espirituais e divinas” que haviam sido outorgadas no princípio ao ancestral do gênero humano (7).


O “Tratado da Reintegração dos Seres”, escrito a pedido dos discípulos de Pasqually, acabou por ficar inacabado dado a viagem de Martinez a Porto Príncipe, onde esse encontraria a morte. O que ele escreveu até ali, versou sobre sobre “doutrinas baseadas no velho testamento” e alguns creem que se obra tivesse sido terminada ela conteria também elementos do esoterismo cristão (8); Tal hipótese apoia-se na teurgia de Pasqually, destinada especialmente aos membros do alto grau de sua ordem, os Reau-Croix, que estariam “autorizados” a evocar o Cristo Glorioso que reinava sobre os espíritos dos profetas, patriarcas, santos e anjos.



Notas do Blog Primeiro Discípulo:



1 - Filho de Jesper (pastor luterano e capelão real, tendo sido Bispo de Skara) e Sarah Behm Swedberg, Formou-se em Engenharia de Minas e serviu ao seu país durante muitos anos como Assessor Real para assuntos de mineração. Após a morte do pai, sua família foi elevada à nobreza pela Rainha Ulrica, pelos méritos do Bispo Swedberg. O sobrenome familiar foi então mudado para Swedenborg e, assim, Emanuel, como filho mais velho, passou a ter lugar no Parlamento sueco, onde teve destacado papel durante muitos anos. Inspirado na Cabala Denudata de Knorr von Rosenroth e nas obras de St Geoges de Marsais e em em autores de cariz gnóstico criou um sistema esotérico próprio cujo principal elemento era a crença de que a criação do universo resultaria de uma emanação da Divindade, aproximando-se assim do panteísmo.


As ideias de Swedenborg influenciaram fortemente importantes gnósticos e escritores místicos como Jorge Luis Borges, William Blake, Balzac e Baudelaire. Curiosamente chegou a compilar alguns ritos maçonicos.


Dentre suas principais obras podemos citar Arcana Celestia, da qual Ernest Benz destaca o estabelecimento de uma “Cristologia Cósmica” e De Telluribus in mundo nostri solaris quae vocantur planetae (Das Terras em nosso mundo solar) de 1758.


Embora alguns sustentem que Martinez de Pasqually tenha recebido, em Londres, a iniciação diretamente das mãos de Swedenborg isso parece irreal dado a falta de documentos que apoiem essa tese; como sabemos Martinez de Pasqually gostava de atribuir acontecimentos extraordinários a sua biografia, por exemplo uma suposta patente que ele apresentava e que haveria sido concedida a seu pai em 20 de maio de 1738 por um certo “Charles Stuard [sic], Rei da Escócia, da Irlanda e da Inglaterra, Grande Mestre de todas as Lojas distribuídas sobre a face da terra”. Essa patente seria para o estabelecimento de uma “Loja de Stuard” na “Província de Aix na França”, e em favor de “Dom Martinès de Pasquais (sic), escudeiro, com a idade de 67 anos, nascido na cidade de Alicante, Espanha”, e transferível para seu filho mais velho “Joachim Dom Martinès de Pasqualis, com a idade de 28 anos, originário da cidade de Grenoble, França”. E, a esse respeito, destacam Dachez e Pétillot [2014: 37]) é mais facil crer que essa história na verdade faça parte da coleção de falsos documentos e narrativas maçônicas dos quais os charlatães e os cavaleiros de indústria fizeram grande abuso no século XVIII. Seja como for comparar a obra dos dois autores já seria suficiente para demonstrar que o conhecimento de um, definitivamente, não vem do outro.


2 - Já em nossa primeira postagem falamos que nosso rito foi estruturado na França e na Alemanha do Século XVIII , onde o pano de fundo era por um lado o esoterismo gnóstico de cunho cabalístico, o pietismo e o idealismo filosófico que originaram o Romantismo Alemão e por outro lado o protestantismo clássico e a simpatia pela filosofia racionalista do nominalismo. O rito nasce em meio a todas essas expressões de pensamento e assenta as suas bases na simbologia maçônica e cavaleiresca. Logo, não é difícil de ver que ponto central das ideias apresentadas no “Tratado de Reintegração dos Seres” ou das teses apresentadas por Martinez de Pasqually a seus discípulos por meio de seu epistolário, não representam em nenhum momento (e de nenhuma forma) qualquer espécie de frescor ou acréscimo às teorias do cabalismo judaico-cristão, esotéricas ou do gnosticismo corrente da época.


O cabalismo cristão ganha força no Renascimento e já ali estabelece uma “nova gnose”. É conveniente conhecer, por exemplo, os trabalhos da Academia Platônica de Florença que muito influenciou as artes e o pensamento renascentista. Dados importantes sobre esse tema podem ser encontrados na obra de D. P. Walker, "Spiritual and Demonic Magic from Ficino to Campanella" (University of Notre Dame Press, Notre Dame – London, 1969), Obra que demonstra como uma corrente neoplatônica, hermética e mágica, dominou o pensamento dos principais humanistas e artistas do Renascimento impondo-lhes uma cosmovisão diferente da medieval...


Nesse mesmo tempo Pico de Mirandola lançava as primeiras sementes do cabalismo cristão, na Itália, enquanto Reuchlin fazia o mesmo na Alemanha. (cfr. François Secret, "Les Kabbalistes Chrétiens de la Renaissance", Dunod, Paris, 1964.). Posteriormente esse pensamento, cujas raízes chegavam até Eckhart, foi trabalhado por Jacob Boehme e Oetinger e serviu de base para o romantismo alemão e para o descarte definitivo das ideias medievais. A “visão central” que esses homens apresentaram seria o reflexo direto da experiência mística que eles acreditaram vivenciar (e isso encantou muitos pensadores da época).


E nesse fervilhar de sistemas e teorias filosóficas qual o grande destaque do pensamento de Martinez de Pasqually para formação do pensamento ocidental ? Nenhum.


Então por qual razão seus discípulos (homens como Saint Martin e Willermoz) o seguiram de forma tão respeitosa e nele depositaram tanta fé ? Simples, ele havia lhes prometido tornar toda essa encantadora cosmovisão do século em algo completamente tangível através de sua Teurgia. E conseguiu ? Com Saint Martin não sabemos (apenas que esse posteriormente recusou-se a continuar seguindo caminhos teúrgicos) já com Willermoz sabemos que toda tentativa culminou em fracasso e até decepção.



4 - René Guénon reconhece em Martinez um iniciado nas fontes judaicas mas recusa-se a adjetivá-lo como cabalista.


5 - Ação de conhecer; conhecimento, ciência, sabedoria.


6 - É difícil traçar toda a trajetória de Pasqually pois era, sem dúvida, um homem misterioso. A forma com que ele apresenta sua doutrina remete ao pensamento que é de origem sefardita, conforme diz o texto… O que temos (nós do Blog Primeiro Discípulo) de mais concreto é uma carta de Willermoz a Jean de Turckheim que atribui sua instrução diretamente a seu pai: “[...] Em seu ministério, Pasqually sucedeu a seu pai que era um homem sábio, discreto e muito mais prudente que seu filho. O pai o colocou ainda jovem, na Guarda Valona. Onde teve uma querela que acabou culminando em um duelo no qual matou seu adversário. Na Espanha, os duelos eram crime sério e por essa razão ele teve que ausentar-se imediatamente tendo que ficar afastado por um longo período de tempo. Isso levou seu pai a apressar-se em consagrá-lo como seu sucessor antes que partisse. Passado muito tempo, o pai, percebendo que se aproximava o fim de seus dias, mandou que seu filho regressasse o mais rápido possível afim de receber as últimas orientações e instruções, o que foi feito.[...]”


7 - Deixamos de fazer diversos comentários nas partes anteriores do texto por achar desnecessário opor à doutrina de Pasqually qualquer argumento que seja; afinal a maior parte dela não nos interessa ou a ela voltamos atenção atenção apenas por curiosidade, já o que nela nos interessa foi incorporada a Doutrina geral de nosso Regime por Jean Baptiste Willermoz, sendo todavia, corrigida de seus erros trinitários e cristológicos e - a partir daí - amplamente cristianizada.



Fontes:

  • Ferro, Jorge Francisco: "LA DOCTRINA MARTINISTA"


I.C.J.M.S.


Que Nossa Ordem Prospere !!!




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